Bar LBTQI feminista em SP cobra taxa de homens e espera que eles não voltem .


Desde o começo da reforma da garagem que ficava na parte de baixo de um sobrado em Santa Cecília, zona central de São Paulo, até hoje, tudo no bar DAS é feito por mulheres e para mulheres. A arquiteta, a mestre de obras, a pedreira, a eletricista, a serralheira, as artistas das obras usadas na decoração, e as dos objetos e roupas à venda na lojinha, a fabricante da cerveja, a porteira, as garçonetes, a chef, a bartender, todas são mulheres.
A designer gráfica Nina Veloso, 34 anos, e a chef de cozinha Raquel Braga, 37, donas do DAS, dizem que não chegaram a fazer cotação de preço para escolher a empresa que executaria a reforma. Sua ideologia feminista estava acima de qualquer valor financeiro.
"Nós colocamos isso como uma obrigação, um ideal mesmo. Além de fortalecer o trabalho das meninas, a gente mostra que é possível montar e gerir um bar com mão de obra feminina."
Veja também:
A chef Raquel Braga e a bartender Nina Veloso, no balcão do DAS (Foto: Paulo Sampaio)

4.000 mulheres

A empresária Katherine Pavloski, 31 anos, dona da Mana Conserto, responsável pela obra, segue uma filosofia afinada com a das donas do DAS. Com quatro anos e meio de funcionamento, a Mana tem como mote "mulher conserta para mulher".
"A gente busca não só oferecer um serviço de qualidade, mas garantir que a cliente tenha confiança e se sinta segura em relação às pessoas que estão entrando na casa dela para fazer um trabalho pesado", diz Katherine, que calcula já ter atendido mais de 4.000 mulheres.

Pedreira de filme pornô

Feminista acima de tudo, Kathe explica que visa muito mais o lucro social da empresa do que o financeiro. "Mostramos às mulheres que trabalham conosco quem elas são e onde podem chegar. Investimos em cursos para elas, e não as deixamos se sentirem rebaixadas por causa de preconceito de raça, sexo ou gênero. Algumas eram retraídas, resignadas e sofriam com isso.  Ensinamos que deveriam brigar pelo que queriam. E aprendemos muito com elas também."
Kathe diz que já tinha uma base de elétrica, que aprendeu com o avô, e depois fez cursos técnicos: "Não temos o estereótipo do trabalhador braçal clássico. Não carregamos sacos de 10kg de cimento nas costas, por exemplo, e cuidamos do corpo para não acabar a vida com problemas graves de coluna. Isso gera piadinhas machistas. O marido de uma cliente disse para ela: 'Imagine uma mulher dessas trabalhando aqui em casa, de capacete e uniforme! Ia parecer filme pornô'!"
A empresária Katherine Pavloski levou três meses na reforma do DAS (Foto: Paulo Sampaio/UOL)

Hétero paga R$ 15

Nina e Raquel explicam que a proposta do DAS é "focar nas lésbicas, bissexuais, trans". "Mas nos interessa também atingir os não binários e os queers", diz Nina.
Homens heterossexuais desacompanhados não são bem-vindos. Aos que vão com frequentadoras hétero ou bissexuais cobra-se uma taxa de R$ 15: "Foi a forma que a gente encontrou de mostrar a posição privilegiada que eles ocupam na sociedade", diz Nina.
"Importante dizer que o dinheiro não fica para o bar. A gente doa para instituições que ajudam mulheres que querem se separar dos maridos e não conseguem, mulheres trans e em situação de vulnerabilidade, ou de rua", informa Raquel. 

Proteção anti-escrotos

As sócias acreditam que, embora sejam minoria absoluta, as mulheres que aparecem no bar com homens heterossexuais buscam "um lugar onde se sintam seguras". "Elas sabem que se der algum b.o. (boletim de ocorrência) com o cara, se ele for um babaca, um escroto, a gente vai defendê-las."
Segundo Nina, a ideia foi criar um ambiente onde o público feminino possa beber, comer e bater papo, sem ser importunado. "É algo que simplesmente não existe em São Paulo.  Se você sai para tomar um drinque ou trocar uma ideia com a sua amiga ou com a sua date, você vai ser olhada ou abordada de um jeito que talvez não queria naquele momento."
As sócias alegam que "as mulheres homossexuais sofrem muito com sexismo e machismo". "Duas mulheres juntas são o fetiche masculino clássico e, ao mesmo tempo, se os homens não conseguem nada com elas, vão dizer que a sapatão só não gosta deles porque nunca foi comida direito."

Briga de lésbicas?

O blog indaga sobre o machismo eventualmente reproduzido por algumas lésbicas e pergunta se já houve registro no bar de bebedeiras que descambam para brigas entre mulheres –por assédio, ciúme, traição, ou qualquer outro motivo. Nina e Raquel fazem uma expressão de estranhamento e dizem que jamais passaram por nada parecido na vida. "Em 34 anos de boemia, nunca vivi situação de briga de lésbicas. De homens cis (que se apresenta ao mundo e se identifica com o seu gênero biológico), aí sim", diz Nina.
Homens trans se comportam diferente? "Os que vêm ao bar, acho que por ter passado por muita coisa antes de transicionar, muito constrangimento, não vêem sentido em replicar esse comportamento aqui dentro. E ninguém vem aqui para chapar o coco e ficar muito louca, entendeu? Não é a nossa vibe", diz Raquel.

LGBTQI, sem G

Os gays cis, que representam o G da sigla LGBTQI+, também não fazem falta no bar. "A gente gostaria muito que eles procurassem outros lugares para ir, até porque têm muitos só para gays", diz Nina.
Por mais que, a princípio, os gays não representem uma ameaça às mulheres lésbicas ou trans, elas explicam que eles não se enquadram no conceito estritamente feminino do DAS. "A questão não é a orientação sexual, é de gênero mesmo. Eles são uma presença masculina", dizem.
No dia em que o blog foi ao DAS e perguntou à porteira se podia falar com as donas, ouviu um: "Ih, amigo, chegou em péssima hora. Agora, não tem a mínima condição. Procura o bar no insta." Durante a entrevista, ao ouvir esse relato, Nina e Raquel riram: "Hahaha É a Gabs", referindo-se à mulher trans que faz as vezes de protetora do ambiente.

Free the Nipple

O bar é estreito e comprido, pouco iluminado, com duas mesas propositalmente despretensiosas instaladas à direita de quem entra, e sofás e poltronas vintage estilo "família de mudança vende" distribuídas ao longo do espaço. De um lado e do outro, as paredes estão cheias de obras que aludem à resistência feminista ou à orientação política do bar.
Em uma viga logo à entrada está afixada uma reprodução da placa "Rua Marielle Franco". Na parede à esquerda, há um trabalho da artista Bruna Alcântara composto por retratos de mulheres, com mensagens bordadas no papel. "Sororidade"; "Quem matou Marielle?"; "Free the Nipple"; "Negra Favelada Feminista"; "The Future is Female".
Ao fundo, o balcão do bar tem formato sextavado e, no alto da parede, há prateleiras repletas de garrafas semi-cheias de uísque, conhaques e licores; o bar é separado da cozinha por uma cortina laranja de plástico emborrachado.
Dizeres de resistência feminista bordados sobre as fotos de mulheres no painel de Bruna Alcântara, exposto em uma das paredes do bar (Foto: Paulo Sampaio/UOL)

Lésbica heterotop

De acordo com Raquel e Nina, a faixa etária média das frequentadoras está entre 20 e 35 anos. A designer Vitória Mota, 21, afirma que no DAS ela consegue ser ela mesma — como em nenhum outro lugar. "As pessoas [homens] andam muito estranhas. Acham que têm uma intimidade com a gente que não têm, e já chegam contando piadinhas. Aqui [no DAS], mesmo que seja uma lésbica heterotop ["machista"], ela não vai ser tão invasiva", acha.
Vitória está com a prima, a universitária Beatriz Rebechi, 19, e ambas se declaram "obviamente feministas" ("não há como não desejar o melhor para o sexo feminino"). A dada altura, elas questionam o motivo pelo qual o UOL escala um repórter homem cis para escrever uma matéria sobre um bar só de mulheres. As duas acreditam que o texto jamais conseguirá traduzir as agruras pelas quais uma mulher passa, já que quem escreve nunca viveu nada parecido. Elas afirmam que o olhar de um homem a respeito daquele universo fatalmente será "bizarro". "A visão masculina sobre o sexo lésbico é muito sexualizada."
Apesar deste senão, elas desandam a falar, passam quase uma hora conversando com a reportagem e fazem revelações surpreendentes –entre elas, que as mulheres as fazem sofrer muito mais do que os homens. As duas se queixam, rindo, de paixões lésbicas recentes, e reconhecem que valorizam a "sofrência". "Os homens são fáceis, a gente consegue a hora que quer, não existe desafio. Com as mulheres, é mais complicado. Elas prometem muito e não cumprem nada (risos apaixonados). Sem contar que o mundo sapatão é muito intenso. Um dia equivale a um mês", diz Vitória.

The L World

Na DAS Shop, um quartinho onde se vendem objetos de interesse feminino, há livros, sex toys, adesivos, lambes e camisetas com inscrições como "CHP" "XXT", sigla para "chupa xoxota".
Um projetor no alto, à direita, transmite filmes de temática LBTQI+. Foi instalado ali em agosto, mês da visibilidade lésbica: "Nos próximos dias, a gente vai passar 'The L World"', explica Raquel, referindo-se à série ambientada em Los Angeles, na Califórnia (EUA), que retrata as desventuras de um grupo romantizado de mulheres lésbicas e bissexuais.
Raquel e Nina fazem pose em um dos sofás vintage do bar (Foto: Paulo Sampaio)

Caminhoneira e sapatão

No banheiro, há uma miniatura de caminhão pendurada na cordinha que serve para puxar a descarga —uma referência às "caminhoneiras", como as lésbicas masculinizadas são chamadas pejorativamente. (De uma maneira geral, as mulheres homossexuais feministas não gostam de definir a "caminhoneira" como "lésbica masculinizada", porque "remete ao sexo masculino"; preferem dizer que a caminhoneira é a que  "não tem uma linguagem corporal feminina"; algumas usam o termo em inglês "butch", que significa "machão" ou "fanchona").
No passado, as lésbicas reagiam mal à expressão caminhoneira; hoje, por questões políticas, elas o assumem deliberadamente. A ressignificação é parte da luta.
A propósito, o termo "sapatão", que já foi considerado ultrajante, também passou por ressignificação. Para ilustrar, Nina conta uma história: "Antes de encontrar esse imóvel, nós procuramos muito um lugar que fosse perto de uma sapataria. Eis que, um dia, a gente estava em uma fornecedora de cerveja e, quando falamos o endereço para ela fazer a entrega, apareceu uma mulher do nada e disse que tinha morado na rua Fortunato, 133 [endereço do bar] e que o pai dela tinha uma sapataria ali na garagem."
No banheiro, detalhe do caminhão pendurado na cordinha para puxar a descarga (Foto: Paulo Sampaio/UOL)

Feminismo interseccional

Apesar do conceito rigoroso do bar, Nina e Raquel ficam indignadas quando se pergunta se elas são "lésbicas radicais". "Pelo amor de Deus, não! Me respeite", diz Raquel. "A gente pratica o feminismo interseccional. É outra pegada!"
Feminismo interseccional. "Nós entendemos que todas as mulheres fazem parte da luta. A hétero, a lésbica, a trans, a preta…"
Nina e Raquel dizem que sim, já foram criticadas por empunhar uma bandeira de liberdade e não promover a inclusão irrestrita de gêneros e orientações sexuais. Mas reafirmam sua filosofia. "Tem gente que ainda não entendeu o conceito. Não é segregação. A maioria dos bares para lésbicas se tornam mistos, e a proposta inicial se perde. É isso que não queremos."

Do Uol
Tem quem goste

Nenhum comentário:

Postar um comentário