Opinião (como informação)


Criminalizar quem compra sexo?

A ideia de que a compra e venda de sexo é sempre uma forma de agressão despontou no seio do movimento feminista sueco e tem vindo a ser exportada, ainda que com algumas nuances.
Chamava-se Eva-Marree, mas eu conhecia-a como Petite Jasmine num luxuoso hotel de Estocolmo. Circulava nesse meio exclusivo. Bastava-lhe trabalhar duas ou três vezes por mês. Cobrava 450 euros por hora. “Nada mau.”

Anunciava os seus serviços num blogue chamado Njutning till Salu, traduzível por “prazer à venda”. Era lá que a abordavam. “Se me agrada, falo por email, por telefone. Só depois marco um encontro. O primeiro é sempre num local público.”
Essa estratégia, que antecedia a decisão final de avançar ou não avançar, também a ajudava a despistar a Unidade de Prostituição. Nunca sabia se havia algum elemento a observá-la. Podia ser seguida até entrar no quarto ou surpreendida já no acto. E o cliente teria de dizer algo convincente.
O sistema legal da Suécia assume que quem compra sexo é sempre um agressor e que quem vende sexo é sempre uma vítima, mesmo que o faça de livre vontade. Nem reconhece tal vontade como autêntica. “Algo aconteceu com elas”, disse-me a então procuradora-geral adjunta Lise Tamm.
A ideia de que a compra e venda de sexo é sempre uma forma de agressão despontou no seio do movimento feminista sueco e tem vindo a ser exportada, ainda que com diferentes nuances. Outra vertente do feminismo, mais assente na liberdade de decidir sobre o próprio corpo, resultou em políticas bem diferentes, por exemplo, na Alemanha, onde a venda de sexo está regulada como qualquer trabalho. Portugal está no meio. Ignora adultos que compram sexo a adultos, desde que estes o vendam de livre vontade. Criminaliza, sim, quem se meter no meio para ganhar dinheiro.
Quando a conheci, no princípio do Outono de 2011, Petite Jasmine não poupou críticas ao modelo sueco. A atenção foca-se na segurança do cliente. E aumenta o preconceito. Nada a enfurecia mais do que o efeito disso no exercício das responsabilidades parentais. “Legitima-se a ideia de que uma pessoa não pode ser boa mãe e trabalhadora do sexo ao mesmo tempo.”
Falava por experiência. Batia-se pela guarda dos filhos, uma menina de três anos e um menino de dois. Não os via havia três meses. Mal soubera o que ela andava a fazer, o pai deles alertara os serviços sociais. Primeiro, os serviços viram-na como “uma vítima”. Tentaram “salvá-la”. Como ela recusou esse papel, disseram-lhe que estava “a romantizar”, que tinha uma “falsa consciência”, que não percebia o dano que estava a causar a si própria. Em poucas horas, tiraram-lhe as crianças e entregaram-nas ao ex, apesar de antes lhe terem dito que o deixasse, porque era agressivo. O tribunal optou pela guarda partilhada. 
Quando a conheci, ela estava à espera que a decisão judicial fosse cumprida. Só agora soube que isso nunca chegou a acontecer. E que o ex-namorado acabou por matá-la no dia 11 de Julho de 2013. O jornalismo tem destas coisas. Vamos conhecendo pessoas com as quais por vezes falámos sobre os assuntos mais íntimos e nunca mais as voltamos a ver.
A propósito do Dia Internacional Contra a Violência Sobre Trabalhadores do Sexo, que se assinala no dia 17 de Dezembro, a secretária-geral da Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres, Ana Sofia Fernandes, deu uma entrevista à TSF a defender a criminalização dos clientes. E eu lembrei-me dela.
Quando ouço alguém dizer que o modelo sueco protege as pessoas que vendem serviços sexuais, lembro-me sempre da Petite Jasmine e da Pye Jakobsson, líder da Rose Alliance, uma associação de trabalhadores do sexo a que ela se juntara. Para esta última, o grande resultado disso também era o reforço do estigma, “a pior violência”. A actividade entrou na clandestinidade: quem está na rua tem pouquíssimo tempo para avaliar um cliente antes de entrar no carro; quem atende num apartamento é despejado mal o senhorio descobre; ninguém pode partilhar um espaço para receber clientes. 
Alexandra Oliveira, professora da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto que estuda esta matéria, é que me deu a notícia. “É considerada a primeira vítima do modelo sueco.”
Numa entrevista publicada num blogue dedicado ao trabalho sexual, Pye conta que o ex-companheiro de Petite Jasmine foi arranjando entraves para evitar cumprir a decisão judicial. Houve outras decisões semelhantes. À quarta, alegando que as crianças já não estavam habituadas à mãe, o tribunal optou por atribuir guarda exclusiva ao pai. Ela teria visitas.
Petite Jasmine recorreu ao Supremo Tribunal. E, no Verão de 2013, ia por fim voltar a estar com os filhos, ainda que na presença de um trabalhador social, que a ajudaria a reaproximar-se deles. Encontrou-se com a menina. Ia encontrar-se com o menino. Cruzaram-se no autocarro. Começaram a discutir. O ex acabou por matá-la e por esfaquear a assistente social. 
Era um homicídio semelhante a muitos dos que ocorrem num contexto de violência doméstica. Ao que tem dito Pye, o ex-namorado já a perseguira e ameaçara várias vezes. Com uma diferença: ele sentia-se legitimado na sua acção e ela sentia que não podia dizer à polícia que estava a ser perseguida e ameaçada pelo pai dos filhos dela por fazer o que fazia. Queixou-se aos serviços sociais, que acabaram por testemunhar em seu favor no processo de regulação de responsabilidades parentais. Agora, é um ícone de quem pede a descriminalização.

Ana Cristina Pereira é cronista do jornal Publico em Lisboa

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