Nelson sobreviveria nos dias de hoje?

Nelson Rodrigues dizia que mulher normal gosta de apanhar. Faz sentido?

Folhapress
O dramaturgo foi o autor da polêmica frase "Nem todas as mulheres gostam de apanhar, só as normais" Imagem: Folhapress
Heloísa Noronha
Colaboração para Universa
21/12/2018 04h00
O jornalista, escritor e dramaturgo Nelson Rodrigues, cuja morte completa 38 anos neste dia 21 de dezembro, construiu sua carreira à base de contradições. Embora se considerasse um reacionário do ponto de vista político, tendo, inclusive, apoiado a Ditadura Militar (1964-1985), assinou vários romances e peças que escandalizaram a sociedade brasileira nos anos 1940 e 1950. Incesto, pedofilia, adultérios, sexo grupal, crimes passionais, aliciamento de menores e prostituição são alguns dos temas abordados em obras como "Álbum de Família" (1946), "Senhora dos Afogados" (1947) e "Asfalto Selvagem: Engraçadinha, Seus Pecados e Seus Amores" (1959).
Mais do que polemizar, a intenção de Nelson sempre foi descortinar a hipocrisia e a neurose que permeiam as relações humanas, em especial as familiares: em público, um exemplo moral a ser seguido; na intimidade, um antro de desejos tortuosos, segredos e devassidão. Em seu trabalho, no entanto, o escritor volta e meia pesou a mão no tratamento às mulheres, mostrando-as como loucas, inconsequentes, frívolas, insensatas e destruidoras de lares e corações. Uma de suas frases mais icônicas --"Nem todas as mulheres gostam de apanhar, só as normais"-- não só induz à normatização da violência doméstica como ainda sugere que a mulher provoca a agressão porque se julga merecedora dela.
A contribuição de Nelson Rodrigues à cultura brasileira é inegável. "Vestido de Noiva" (1943), por exemplo, revolucionou o modo de tratar ações simultâneas em mais de um plano. Porém, citações como essa, dita na época provavelmente com o intuito de chocar, jamais deveriam ser encaradas como verdade ou com seriedade, como indicam as considerações a seguir.
Há mulheres (e homens, também) que gostam, sim, de apanhar, com intuito exclusivamente erótico e de forma consensual. Aquelas que participam de jogos BDSM (sigla para Bondage, Disciplina, Dominação, Submissão, Sadismo e Masoquismo) no papel de submissa gostam do estímulo físico com uma pitada de violência para se excitarem. Porém, trata-se de uma prática erótica combinada previamente com o parceiro, com normas e limites estabelecidos e, vale frisar novamente, de livre escolha.
Mulheres que sofrem violência doméstica e permanecem com o parceiro não gostam de apanhar, nem lhes falta "vergonha na cara", como tantos adoram julgar. As relações humanas são complexas e, muitas vezes, de forma inconsciente, a violência é compreendida como uma forma de amor (quando há dependência afetiva) ou como uma demonstração de ciúme em que a vítima dá ao espancamento um significado de diferenciação. "Se ele me agride, é porque se importa comigo" ou "Ele me ama, apanhei porque dei motivo" são estruturas de pensamento típicas que, possivelmente, foram aprendidas na infância, com os primeiros cuidadores.
Não há justificativas para a agressão contra as mulheres, seja ela física, psicológica, moral, sexual ou patrimonial. Infelizmente, a cultura machista ainda faz com que as mulheres se sintam culpadas pelas agressões sofridas. Muitas pessoas pensam que a violência doméstica não é um problema delas, mas trata-se sim, de um problema social. Todos precisam estar envolvidos para que a sociedade seja mais justa e igualitária. A máxima "em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher" deve ser ignorada em prol da integridade de muitas vítimas em potencial.
Falar que mulher gosta de apanhar é ignorar os altos índices de feminicídios ocorridos no país. Segundo dados recentes da OMS (Organização Mundial da Saúde), o Brasil ocupa a quinta posição no ranking mundial de homicídios de mulheres. O número de assassinatos no país chega a 4,8 para cada 100 mil mulheres. Outra estatística cruel: um levantamento do Ministério Público do Estado de São Paulo revelou que a maioria dos assassinatos de mulheres acontece dentro do ambiente familiar e também durante a semana, de segunda a sexta-feira. E, conforme dados do 12º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado em agosto desse ano, o Brasil registrou 60.018 casos de estupro em 2017, o que corresponde a uma média de 164 por dia, ou um a cada 10 minutos. Como o número se refere apenas aos crimes registrados, estima-se que a realidade seja ainda mais terrível.
A mulher tida como alguém que "gosta de apanhar" porque não enfrenta a situação, possivelmente, enfrenta vários dramas desconhecidos (ou sumariamente ignorados) pelas pessoas: vergonha, humilhação, medo de perder a guarda dos filhos, dependência financeira, ameaça de morte. É importante destacar que, mesmo a Lei Maria da Penha sendo reconhecida internacionalmente como um exemplo, não faltam histórias grotescas no Brasil sobre o tratamento dado às mulheres que buscam apoio nas delegacias (inclusive as especializadas em atendimento feminino) e sobre como as vítimas ainda são, por questões culturais e patriarcais, pouco escutadas, desacreditadas ou ridicularizadas, resultado de uma educação machista cuja perpetuação ainda é valorizada por aqui.
FONTES: Ana Maria Fonseca Zampieri, psicóloga, sexóloga e autora do livro "Erotismo, Sexualidade, Casamento e Infidelidade" (Ed. Ágora); Instituto Patrícia Galvão; Lidiane Silva, psicóloga do Rio de Janeiro (RJ); Malvina Muszkat, psicanalista e autora do livro "O Homem Subjugado - O Dilema das Masculinidades no Mundo Contemporâneo" (Ed. Summus); Potira Vilhena, psicóloga voluntária do GRAM (Grupo de Apoio à Mulher), do Rio de Janeiro (RJ), e Vanessa Molina, gerente de captação de recursos da Associação Fala Mulher, de São Paulo (SP)

Nenhum comentário:

Postar um comentário