Pedidos ao novo presidente
Bruno Aragaki Do UOL, em São Paulo
Claudia Andujar
Convivência
'Não estou preocupado com Bolsonaro. Precisamos de saúde e respeito a nossas terras', diz líder ianomâmi
Longe
do Fla-Flu político que tomou o Brasil desde as eleições e, de certa
forma, ainda perdura, o líder ianomâmi Davi Kopenawa, 62, analisa com
parcimônia o cenário político do Brasil.
"Para a gente, não mudou nada. Só muda quando começa. Estamos esperando o que ele [Bolsonaro] vai fazer", disse ao UOL, por telefone, em Boa Vista (Roraima).
Porta-voz
de uma comunidade que reúne cerca de 20 mil pessoas vivendo na Terra
Indígena Ianomâmi, homologada em 1992 sob o governo Collor, Davi está a
par das declarações do presidente eleito. Mas, negociando há décadas com
os "brancos", desenvolveu um tom ao mesmo tempo conciliador e
combativo.
"Sei que ele fala muita besteira sobre a situação do
nosso povo. Mas eu não conheço ele, não sei como ele é de verdade. A
gente não quer atacar ninguém", resumiu.
Questão internacional
Com
mais de 9,6 milhões de hectares, o território ianomâmi tem uma extensão
equivalente a duas Suíças -- terra natal de Claudia Andujar, 87, que
na década de 1970, como ela mesma descreveu ao UOL, foi uma "das primeiras a conhecer aquele povo que vivia isolad...".
Davi Kopenawa interrompe:
Isolado não. Não gosto dessa palavra. Parece que a gente precisava se juntar. E não precisava.
Claudia pede que Davi, seu amigo há mais de 40 anos, escolha uma palavra mais adequada.
"Não
sei, não tem. A gente estava lá, onde sempre esteve e onde quer estar. O
território é nosso, e você sabe disso", afirma Davi.
Claudia consente.
Depois
de anos fotografando e documentando o modo de vida dos ianomâmis na
fronteira entre Brasil e Venezuela, Andujar se engajou, na década de
1980, fim do período militar, na luta pela demarcação do território.
"Perdi
quase toda minha família no holocausto. Vim para o Brasil e queria uma
nova vida. Conheci um povo que me recebeu bem e vi o que estava
acontecendo: estrada cruzando, doença chegando, madeira sendo explorada,
não podia fotografar e cruzar os braços", explica Cláudia.
As fotografias e os relatos de Claudia rodaram o mundo e ajudaram a pressionar pela demarcação do território ianomâmi.
No
início de agosto, Claudia foi homenageada na Alemanha com a Medalha
Goethe 2018, que premia anualmente aqueles que promovem o "intercâmbio
cultural internacional".
Ao saber do prêmio, ela impôs uma condição: dividi-lo com Davi.
Os dois subiram ao palco em Weimar e falaram da situação em que vivem os indígenas no Brasil.
TBa/ Folhapress
Claudia Andujar/Galeria Vermelho
"No
que depender de mim, não tem mais demarcação de terra indígena", disse
Bolsonaro reiteradas vezes -- tanto durante a campanha, quanto já no
governo de transição.
Pouco antes do Natal, Bolsonaro chegou a
pedir que "o Supremo acorde para isso e nos ajude aí para que essas
reservas sejam exploradas com racionalidade em benefício ao povo
indígena".
No mês passado, o presidente eleito havia criticado as demarcações e a atuação internacional.
"Sempre
notei uma pressão externa e que foi acolhida no Brasil, no tocante, por
exemplo, a cada vez mais demarcar terra para índio, demarcar terra para
reservas ambientais, entre outros acordos que no meu entender foram
nocivos para o Brasil", disse.
Segundo a Funai (Fundação Nacionai
do Índio), atualmente há 462 terras indígenas regularizadas. Elas
abrangem cerca de 12% do território nacional.
A soberania dos
índios sobre essas terras que ocupam foi reconhecida na Constituição de
1988. O texto estabelece "os direitos originários sobre as terras que
[os índios] tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las,
proteger e fazer respeitar todos os seus bens".
Bolsonaro diz que não reverterá as terras já demarcadas, mas é contra novas demarcações.
Ninguém
quer maltratar o índio. Agora, veja, na Bolívia temos um índio que é
presidente. Por que no Brasil temos que mantê-los reclusos em reservas,
como se fossem animais em zoológicos?
Jair Bolsonaro, Em 30 de novembro de 2018
Claudia Andujar / Galeria Vermelho
Quem é estrangeiro?
Mesmo nas áreas demarcadas, é recorrente o conflito entre índios e garimpeiros.
Nos
últimos meses, o Exército e a Polícia Federal conduziram uma operação
que retirou 1.900 garimpeiros da Terra Ianomâmi, que ocupa o norte dos
estados do Amazonas e Roraima, na fronteira com a Venezuela.
"Os
garimpeiros estão lá, são matadores. A lei proíbe, mas eles não
respeitam. Fazem buraco no chão, tiram ouro, fazem cidade. Tem bar e até
aqueles lugares onde você paga para encontrar mulher, como chama..."
pergunta Davi.
"Prostíbulo", respondo.
Ele concorda e
completa o raciocínio: diz que a presença do garimpo é prejudicial
porque contamina as águas, derruba a mata, espanta os animais e traz
doenças.
Em um português fluente, mas com momentos de hesitação,
ele defende a visão de que é herdeiro de uma língua e de uma cultura
autenticamente daqui.
"Nós falamos as línguas brasileiras, vocês
falam outra língua. Assim como você não conhece a minha língua, eu não
conheço direito a sua. Nós somos os brasileiros verdadeiros, que
nasceram no Brasil", afirma.
Imagem cedida pela Galeria Vermelho
Mais médicos
Pesquisa
de 2016 da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) analisou fios de cabelos de
moradores dos indígenas e identificou teor elevado de mercúrio.
A
substância é utilizada pelo garimpo artesanal: misturada com porções de
terra, ela reage com o ouro e forma uma liga (amálgama), permitindo
separar o que é impureza e o que é metal.
Mas o brilho do ouro
ofusca um efeito colateral do mercúrio. Ele é jogado nos rios, chega aos
peixes, aos copos e aos corpos, causando paralisia, depressão e até
demência.
"A gente precisa de mais médico, de remédio, de saúde", diz Davi.
Em
setembro, um grupo de ianomâmis reteve 21 servidores da Funai, em
protesto contra a falta de médicos na região. Duas crianças haviam
morrido de pneumonia.
"O povo ianomâmi não votou, a gente não
precisa votar. O Bolsonaro é a autoridade do país agora. A gente
respeita, não tô preocupado. Só esperamos saúde e respeito a nossas
terras", afirma Davi.
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