Glenn Greenwald escolheu o Brasil para amar e lutar; após revelar os documentos sigilosos de Edward Snowden, o jornalista agora denuncia a parcialidade da imprensa brasileira contra Dilma Rousseff
O casal enfrentou o governo dos EUA, a grande mídia brasileira e agora tenta adotar uma criança. Foto: Marcos Pinto
O casal enfrentou o governo dos EUA, a grande mídia brasileira e agora tenta adotar uma criança. Foto: Marcos Pinto

A bola escapuliu da partida de futevôlei e a caipirinha do turista esparramou-se na areia. Foi amor à primeira vista na praia de Ipanema. Assim Glenn Greenwald, então advogado em Nova York, conheceu David Miranda, morador da favela do Jacarezinho, no Rio de Janeiro. Uma semana depois, começaram um relacionamento que completa 11 anos. Para continuar o enredo hollywoodiano, Greenwald se tornaria jornalista e revelaria um dos maiores escândalos de espionagem do governo dos Estados Unidos ao publicar documentos sigilosos obtidos por Edward Snowden, ex-funcionário da NSA, agência de segurança norte-americana. Agora o casal volta a ganhar destaque ao denunciar o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff à imprensa internacional. Cansado da advocacia, Greenwald foi ao Rio de Janeiro em 2005 acompanhado de seu cachorro para passar dois meses de férias. Tinha terminado recentemente um relacionamento longo e queria repensar a vida na capital fluminense. “O Rio me alegra a alma, nunca mais consegui viajar para nenhum outro lugar”, diz ele. No segundo dia de férias, conheceu Miranda. Para viverem juntos, decidiram ficar no Brasil, já que na época os Estados Unidos não concediam visto para casais do mesmo sexo.
Greenwald assumiu a homossexualidade no primeiro ano da faculdade de Direito na NYU (Universidade de Nova York). Nesse período, participou de campanhas nacionais em defesa dos direitos LGBT. Em 1992, chegou a liderar um boicote ao Estado do Colorado, que havia aprovado uma lei descaracterizando como crime a discriminação a homossexuais.
Para o jornalista, que é constantemente bombardeado por comentários homofóbicos de leitores brasileiros pela internet, o debate LGBT no Brasil está “uns dez anos” atrasado, se comparado ao dos EUA. “Você nunca ouviria nos EUA o que os líderes evangélicos dizem aqui ou o que Bolsonaro fala de Jean Wyllys. Nos EUA existe o sentimento homofóbico, mas não de forma tão aberta. É quase um tabu. No Brasil ainda é aceitável ser homofóbico.”
Assim que chegou ao Rio, Greenwald criou um blog. Especializado em direito constitucional, escreveu sobre um escândalo de espionagem no governo do então presidente dos EUA George W. Bush. “Não tinha qualquer estratégia profissional nem a pretensão de seguir uma carreira no jornalismo. Queria falar sobre as mudanças políticas que estavam acontecendo nos EUA com a chamada ‘guerra ao terror’ e como isso era uma ameaça aos direitos individuais. Eu tinha o conhecimento legal para traduzir às pessoas todas as complicações técnicas que envolviam o caso”, diz. Em pouco tempo o blog alcançou grande audiência, Greenwald foi chamado para escrever para The Salon, revista de política dos Estados Unidos, e de lá para o jornal inglês The Guardian.
“Foi uma ascensão rápida”, conta Miranda. “Não sabia como eu me encaixaria.” Na época, ele trabalhava como gerente de uma loja no centro do Rio. Não tinha ensino superior nem qualquer contato com o mundo da política ou do jornalismo. Criado na segunda maior favela da América Latina, perdeu a mãe aos 5 anos e nunca conheceu o pai. “Minha mãe era prostituta e teve cinco filhos. Nenhum de nós sabe quem é nosso pai.” Passou a morar com uma tia, mas decidiu sair de casa aos 13 anos. “Era rebelde e tinha um anseio grande por liberdade, precisei sair para ganhar o mundo.” Morou na rua por alguns dias para depois se mudar com dois primos, também menores de idade, para a favela do Rato, em Inhauma, zona norte da cidade. Passou por inúmeros trabalhos – entrega de panfletos, faxina, caixa de casa lotérica e atendimento de telemarketing até chegar à gerência de uma loja. Miranda esteve presente na primeira negociação de Greenwald para fechar o contrato com a revista The Salon e foi aí que decidiu que se dedicaria a assessorar a carreira do companheiro. Formou-se em Comunicação e Marketing na ESPM e agora, além de cuidar dos negócios de Greenwald, Miranda é também jornalista e candidato a vereador pelo PSOL-RJ.
O encontro
No final de 2012, Edward Snowden, a quem chamam de Ed, entrou para a vida do casal. “Passei um tempão ignorando os e-mails dele. Achei que fosse mais um maluco querendo emplacar uma grande história”, conta Greenwald. “Ele me mandou um e-mail pedindo para eu baixar um programa de mensagens criptografadas, para que a gente pudesse se comunicar com segurança. Depois me mandou um tutorial por vídeo, passo a passo. Mas nem assim acreditei que fosse uma história real.”
Sem retorno, Snowden procurou Laura Poitras, documentarista norte-americana e amiga de Greenwald, que mais tarde registraria os encontros com o analista de sistemas no filme Citizenfour. Só então Greenwald se convenceu da veracidade das denúncias.
“Aceitamos entrar nessa história mais pela vontade do Glenn. Eu tive medo”, diz Miranda. “Passamos seis horas sentados na cama listando os prós e contras. Pensamos nos riscos que correríamos, inclusive de vida, de como isso afetaria nossos amigos e familiares. Mas os olhos do Glenn brilhavam de um jeito, esse era o sonho dele. Eu era a única pessoa que não poderia dizer não a ele”.
Greenwald foi encontrar Snowden em um quarto de hotel em Hong Kong, onde se viram pela primeira vez, e os documentos sigilosos foram entregues. “Quando cheguei lá, fiquei desconfiado. Era um jovem de 29 anos, mas com cara de 22, magrelo, vestindo t-shirt. Parecia um adolescente que você vê num shopping center. Levamos um dia inteiro para criar uma relação de confiança, mas assim que aconteceu tornou-se inabalável”, conta Greenwald.
Havia centenas de milhares de documentos a serem revelados e pouco tempo para executar a tarefa. Reclusos no quarto de hotel, não sabiam o que os governos dos Estados Unidos, da China ou de Hong Kong haviam descoberto sobre o que faziam. Greenwald dormia em média duas horas por noite. “O medo era de que a qualquer momento alguém fosse arrombar a porta e levar Snowden embora”, diz o jornalista. “Não tínhamos tempo para pensar nos riscos que estávamos correndo. Longe de tudo, naquela cidade enorme e desconhecida, tudo parecia surreal.”
Por uma questão de segurança, Miranda era o único que sabia do trabalho de Greenwald. Amigos e familiares só descobriram quando assistiram ao jornalista na televisão. “Se não soubessem de nada, estariam mais protegidos. Eu estava em Hong Kong e poderiam tentar arrancar informação das pessoas próximas de mim”, diz Greenwald.
Isso não tardou a acontecer. Após uma reunião na Alemanha com Laura, em agosto de 2013, Miranda foi detido no aeroporto de Heathrow, em Londres, e interrogado por nove horas sob suspeita de terrorismo. Ao final da sessão, poderia receber voz de prisão, caso algum agente considerasse que o brasileiro não tivesse colaborado. Miranda ainda chora ao se lembrar do episódio. “Quando desci do avião, havia vários agentes pedindo para os passageiros estarem com os passaportes em mãos. Na hora saquei: ‘Deu merda’”. O brasileiro levava dois pendrives com informações sigilosas sob três camadas de criptografia.
Miranda foi levado a uma sala, na qual ficou sem comer, beber ou ir ao banheiro. Também o deixaram sem casaco a baixíssimas temperaturas. Foi interrogado por sete agentes. “Eu estava trabalhando em um projeto com Glenn e o cineasta Oliver Stone, sobre Guantánamo, e sabia muito bem o que os Estados Unidos e seus aliados fazem com acusados de terrorismo”, diz Miranda. Quando finalmente saiu da sala, ainda acompanhado pelos agentes, o brasileiro começou a gritar por socorro pelo aeroporto: “Eles queriam me liberar depois de nove horas para que eu entrasse na Inglaterra. Se eu entrasse, poderia ter sumido e ninguém mais saberia de mim. Esse era o meu nível de paranoia, mas ao mesmo tempo de conhecimento de como eles agem nessas situações”. Por fim, conseguiu convencer o chefe de segurança a emitir um bilhete para que voltasse ao Brasil. “E não aceitei classe econômica, não. Voltei de primeira classe.”
Neste ano, Miranda ganhou um processo judicial contra o governo britânico pela detenção, que obrigará uma mudança na lei antiterrorismo que justificou o seu interrogatório.
Ameaças e prêmios
Após publicar as denúncias de Snowden, em Hong Kong, para o The Guardian, a ideia inicial de Greenwald era ir a Nova York encontrar outros jornalistas e conceder entrevistas. Seu advogado, no entanto, o orientou a ficar o mais longe possível dos Estados Unidos. O jornalista conta que assim que voltou ao Brasil, o governo norte-americano começou a fazer ameaças, situação que perduraria por um ano. “Não se referiam a nós como jornalistas, mas como criminosos, cúmplices de Snowden, diziam que a gente tinha vendido documentos ao redor do mundo. A cada documento que soltávamos, pensávamos que seria esse a nos levar para a cadeia.”
O jornalista ficou sem ir aos EUA por dez meses. Decidiu correr o risco e voltar ao país de origem com Laura para receber o prêmio Polk de jornalismo, pelo trabalho feito com a documentarista sobre a NSA. No dia seguinte seria a entrega do Pulitzer, que também estavam certos de ganhar. “Apostamos que não seríamos presos. Imagina a cena: os dois na cadeia recebendo o Pulitzer. Pegaria mal para qualquer governo.”
Greenwald, que acaba de publicar mais uma centena de documentos de Snowden, diz que ele e Miranda são espionados desde que tudo começou a vir a público. Só assim o governo britânico saberia que o companheiro vinha de um encontro com Laura antes de ser detido no aeroporto de Londres, argumenta. Diz também que, quando estava em Hong Kong, entraram em sua casa no Brasil e roubaram apenas o computador. Em conversas com Miranda dias antes, havia dito que passaria uma senha para o companheiro acessar um dos documentos pela internet: “Acabamos não fazendo isso, mas qualquer um que lesse a nossa troca de mensagens acharia que havia informações sigilosas no computador do David”.
Na volta ao Brasil, Greenwald reparava em carros constantemente estacionados na rua onde mora. Quando encontrava outros jornalistas, diz ele, pessoas próximas tentavam escutar suas conversas. “Decidimos que não cederíamos à paranoia, senão enlouqueceríamos.”
Apesar disso, nenhum dos dois se arrepende de ter publicado os documentos obtidos por Snowden. “É o sonho de qualquer jornalista fazer uma matéria como essa. Por mim, faria algo assim todos os dias pelo resto da minha vida”, diz Greenwald.
A agitação após as denúncias de Snowden parecia ser insuperável. Neste ano, no entanto, Greenwald diz que mal tem tido tempo para respirar. Saiu do The Guardian e começou a escrever pelo site The Intercept, do fundador do site E-bay, Pierre Omidyar. “O Guardian foi ótimo, mas havia limites para o meu trabalho, até pelo fato de ser um jornal inglês e o governo britânico ser louco. Ele obrigou o jornal a destruir os computadores que continham documentos do Snowden, por exemplo.”
Pelo The Intercept, Greenwald foi o primeiro a entrevistar a presidenta Dilma Rousseff desde seu afastamento e também conseguiu uma exclusiva com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. “Resolvi me juntar a jornalistas que trabalharam comigo no caso Snowden para começar um projeto nosso. Foi quando o dono do E-bay me ligou para dizer que queria criar um novo veículo. Disse que era o quinto homem mais rico do mundo e estava disposto a financiar um jornalismo independente, que, em vez de fugir de processos judiciais, investigaria o que fosse preciso.”
Depois de comprar briga com o governo dos Estados Unidos, o casal volta ao embate – desta vez contra o impeachment de Dilma Rousseff e a cobertura feita pela grande imprensa brasileira. Para Greenwald, a mídia do País se comporta de maneira única no mundo. “Já fiz matéria em 20 países e nunca vi nada parecido: a unanimidade da grande imprensa no Brasil, o ativismo intenso para derrubar a presidenta. A grande mídia se dedica a divulgar propagandas em nome dos interesses dos donos dos veículos. Aqui, o partido de oposição é a grande mídia. Por isso decidi escrever sobre o Brasil e traduzir as matérias para o português. Percebi que existia essa demanda.”
Miranda descreve períodos assim como “movidos a café”, nos quais não há tempo para titubear. Recentemente escreveu um artigo para o The Guardian, no qual acusa a Rede Globo de fazer uma cobertura tendenciosa para apoiar o impeachment. João Roberto Marinho, vice-presidente do Grupo Globo, contestou a matéria e teve sua resposta publicada na área de comentários do site do jornal inglês: “Eu e Glenn vestimos uma armadura e enfrentamos qualquer briga. Sem medo. Outro dia os Marinho vieram me atacar. Eu ataco de volta porque não tenho respeito por quem não respeita a democracia e o trabalho que foi feito neste País nos últimos 15 anos. Eu vim da favela e senti essas mudanças na pele.”
A mais recente empreitada do casal está prestes a começar: o processo de adoção de uma criança brasileira. Ainda estão na primeira etapa, na qual precisam ser aprovados após quatro reuniões com o Conselho Tutelar. Já não há planos de retornar aos Estados Unidos, diz Greenwald. Até por isso a preocupação do jornalista com relação aos desdobramentos políticos do Brasil. “Eu morei em Nova York por 15 anos, com um estilo de vida muito intenso e desgastante. Os cariocas me ensinaram uma nova forma, que é muito mais sobre aproveitar o momento. As pessoas e a cultura daqui me tocaram.” É algo intangível, diz ele. Encontrou o seu lugar.