A democracia arrombada
Crise,
crise mesmo —não os quaisquer embaraços que os jornalistas brasileiros
logo chamam de crises— desde o fim da ditadura tivemos apenas a que
encerrou o governo Collor. Direta ao objetivo, exposta como se nua,
escandalosa e inutilmente previsível, começou e se encerrou em cinco
meses e dias. Estava reafirmado, provava-se vivo e são, o mau caráter
histórico do Brasil.
Mas,
aos quatro anos, a Constituição resistiu e respondeu aos safanões, não
muitos nem tão graves. Não se deu o mesmo com a crise em que fiz minha
estreia como jornalista profissional. Aos oito anos em 1954, a primeira
Constituição democrática do Brasil, em quase 450 anos de história, não
pôde sequer esperar que um golpe militar e um revólver matassem Getúlio.
As tantas transgressões que sofreu desde a posse do Getúlio eleito já
eram o esfacelamento da Constituição democrática, com o desregramento
político, legal, ético e jornalístico da disputa de poder que ensandecia
o país.
O
Brasil deixara de ser democracia bem antes do golpe que o revólver de
Getúlio deixou inconcluído como ação, não como objetivo. Reduzido o
regime de constituição democrática a mera farsa, em poucos meses
seguiram-se o impedimento do vice de Getúlio, a derrubada do terceiro na
linha de sucessão, que era o presidente da Câmara, e a entrega da
presidência ao quarto até a posse do novo presidente eleito. Estes foram
golpes militares do lado até então perdedor, antecipando-se aos golpes
que o lacerdismo e seus subsidiários prepararam, com os militares de
sempre, para impedir a posse do eleito Juscelino.
Em
termos políticos, a vigência da Constituição democrática foi restaurada
por Juscelino. Lacerda, seus seguidores e aliados fizeram mais para
derrubá-lo, e por longos cinco anos, do que haviam feito contra Getúlio.
Dois levantes de militares ultralacerdistas (o primeiro delatado ao
governo pelo próprio Lacerda, temeroso de represália). Mas os desmandos
administrativos, ainda que acompanhados de grandes realizações,
corromperam a vigência plena da Constituição.
A
Constituição que Jânio Quadros encontra é desacreditada, e por isso
frágil. Seus princípios são democráticos, mas, dada a sua fraqueza, o
regime não é de democracia de fato. Um incentivo a aventuras
inconstitucionais, portanto. Primeiro, a que se frustrou na indiferença
ante a renúncia presidencial. Depois, o levante militar contra a posse
do vice. Não foi a Constituição democrática que impediu a guerra civil
entre seus violadores e seus defensores. Foi um acordo que nem por ser
sensato deixava ele próprio de segui-la.
O
Brasil do período em que se deu o governo Jango está por ser contado.
As liberdades vicejaram, o que deu certos ares de regime constitucional
democrático. Mas os desregramentos de todos os lados e o golpismo tanto
negaram a constitucionalidade como a democracia. As eleições para o
Congresso estavam viciadas por dinheiro norte-americano e brasileiro,
grande parte do Congresso seguia ordens de um tal Ibad, que era uma
agência da CIA, a agitação governista e oposicionista criava um ambiente
caótico e imprevisível mesmo no dia a dia. As liberdades não bastavam
para configurar uma democracia, propriamente, por insuficiência
generalizada do pressuposto democrático.
Passados
os 21 anos de serviço ostensivo dos militares brasileiros aos
interesses estratégicos e econômicos dos Estados Unidos, a Constituição
de 1988 apenas embasou e aprimorou a democratização instituída com a
volta do poder aos seus destinatários por definição e direito –os civis,
em tese, os agentes de civilização. De lá até há pouco, o que houve no
governo Collor foi como um mal-estar. Não afetou as instituições e sua
prioridade democrática.
Não
se pode dizer o mesmo do Brasil atual. Há dez meses o país está
ingovernável. À parte ser promissor ou não o plano econômico do governo,
o Legislativo não permite sua aplicação. E não porque tenha uma
alternativa preferida, o que seria admissível. São propósitos torpes que
movem sua ação corrosiva, entre o golpismo sem pejo de aliar-se à
imoralidade e os interesses grupais, de ordem material, dos
chantagistas. Até o obrigatório exame dos vetos presidenciais é
relegado, como evidência a mais dos propósitos ilegais que dominam o
Congresso. A Câmara em particular, infestada, além do mais, por uma
praga que associa a criminalidade material à criminalidade institucional
do golpe.
A
ingovernabilidade e, sinal a considerar-se, o pronunciamento político
contra a figura presidencial, pelo comandante do Exército da Região Sul,
são claros: se ainda temos regime constitucional, já não estamos sob
legítimo Estado de Direito. A democracia institucional desaparece. Como
indicado no percurso histórico, sempre que assim ocorreu e não foi
contido em tempo, o rombo alargou-se. E devorou-nos, com nossa teimosa e
incipiente democracia.
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