A ÁFRICA E A TRAVESSIA DA MORTE
- A "Primavera" Árabe, fomentada pelos EUA e pela União Europeia, com suas intervenções no Oriente Médio e no Norte da África, continua pródiga em produzir cadáveres, em fecunda safra, trágica e macabra.
Morre-se nas mãos do Exército Islâmico, que começou a ser armado para tirar do poder inimigos de Washington, como Kaddafi e Bashar Al Assad. Morre-se nas cidades destruídas da Síria, da Líbia e do Iraque. Morre-se no deserto, ou à beira mar, na fuga do inferno que se estendeu por países onde até poucos anos crianças iam para a escola e seus pais, para o trabalho, todas as manhãs.
Morre-se, também, no Mar Mediterrâneo, quando naufragam embarcações frágeis e superlotadas a caminho de um destino incerto em um continente, a Europa, que odeia e rejeita os refugiados de seus próprios erros, alguns tão velhos quanto a política de colonização que adotou em um continente que ocupou, roubou e violentou, de todas as maneiras, por séculos a fio.
Para não escrever a mesma coisa, desta vez sobre os mortos de Catânia, reproduzo texto do final de 2013, sobre os mortos de Lampedusa, que pereceram em um dos mesmos inumeráveis naufrágios, nas mesmas circustâncias, nas mesmas geladas profundezas, em que recebem, agora, os corpos daqueles que, empurrados pelo desespero, a fome e a violência, os seguiram para a morte, fazendo uma trágica travessia que, na maioria das vezes, não leva a lugar nenhum:
"Berço de antigas civilizações, o Mar Mediterrâneo abriu suas águas, por dezenas de séculos, para receber, em ventre frio e escuro, os corpos de milhares de seres humanos.
Mar de
vida, morte e sonho, Ulisses, na voz de Homero, singrou suas águas. E
tampando os ouvidos, para não escutar o canto das sereias, aportou em
imaginárias ilhas, fugindo de Cíclope e Calipso, para enfrentar, a remo e
vela, os ventos de Poseidon em fúria.
Por
Troia, Cartago, nas Guerras Púnicas ou do Peloponeso, mil frotas
cavalgaram suas ondas, pejadas de armas e guerreiros. E, no seu leito
descansam, se não os tiver roído o tempo, comerciantes fenícios e
venezianos, guerreiros atenienses e espartanos, os pálios e as espadas
de legionários romanos, escudos e capacetes cartagineses, navegantes
persas, cavaleiros cruzados, califas e sultões.
Os mortos do Mediterrâneo descansam sobre seu destino.
Suas
mortes podem não ter sido justas, mas, obedeciam ao fado das guerras e
do comércio, à trajetória do dardo ou da flecha que subitamente atinge o
combatente, ao torpedo disparado pelo submarino, à asa, perfurada por
tiros de artilharia, de um bombardeio que mergulha no mar a caminho da
África do Norte, ao sabre que os olhos vêem na mão do inimigo e à dor do
imediato corte.
De certa forma, elas obedeciam a uma lógica.
Mas não
há lógica ou utilidade nas mortes que estão ocorrendo nestes dias, dos
meninos e meninas que se afogam, em frente à costa italiana, na
tentativa de chegar a solo europeu, depois de atravessar o Mediterrâneo.
Há anos,
centenas de pessoas têm morrido dessa forma. No dia 3 de outubro, um
naufrágio na ilha italiana de Lampedusa deixou ao menos 339 mortos –
quando cerca de 500 imigrantes vindos da Eritreia e da Somália tentavam
chegar à Itália. Oito dias depois, uma embarcação com 250 imigrantes
africanos virou na mesma região e 50 pessoas morreram.
Que
crime cometeram esses meninos e meninas? Nos seus barcos eles não
levavam o ouro da Fenicia, nem lanças e escudos, nem mesmo comida, nem
seda ou veludo, a não ser a sua roupa, seus pais e suas mães, sua pobre e
corajosa esperança de quem foge da guerra e da miséria.
Mas,
mesmo assim, a Europa os teme. A Europa teme a cor de sua pele, o idioma
em que exprimem suas idéias e suas emoções, os deuses para quem oram,
seus hábitos e sua cultura, sua indigência, sua humanidade, sua fome.
Se, antes, lutavam entre si, os europeus hoje, estão unidos e coesos, no combate a um inimigo comum: o imigrante.
O imigrante de qualquer lugar do mundo, mas, principalmente, o imigrante da África Negra e do Oriente Médio.
Barcos
de países mediterrâneos, como os da Grécia, Espanha e Itália, patrulham
as costas do sul do continente. Quando apanhados em alto mar, em
embarcações frágeis e improvisadas, por sua conta e risco, mais
náufragos que navegantes, os imigrantes são devolvidos aos países de
origem.
Antes, a imigração era, principalmente, econômica.
Agora, a
ela se somam as guerras e os deslocamentos forçados. São milhões de
pessoas, tentando fugir de um continente devastado por conflitos
hipocritamente iniciados por iniciativa e incentivo da própria Europa e
dos Estados Unidos.
O Brasil
está fazendo sua parte, abrindo nosso território para a chegada de
centenas de refugiados sírios, como já o fizemos com milhares de
haitianos e clandestinos escapados da África Negra que chegam a nossos
portos de navio.
A Itália
lançou uma operação militar “humanitária”, para acelerar o recolhimento
de imigrantes que estiverem navegando em situação de risco junto às
suas costas, mas irá manter sua rigorosíssima lei de veto à imigração,
feita para proibir e limitar a chegada de estrangeiros.
Como a
mulher, amarga e estéril, que odeia crianças, a Europa envelhece
fechada em seus males e crises, consumida pela decadência e a maldição
de ter cada vez menos filhos.
Mas prefere que o futuro morra, junto com uma criança árabe, no meio do mar, a aceitar a seiva que poderia renovar seu destino.
Sepultados
pela água e o sal do Mediterrâneo, recolhidos, assepticamente, nas
praias italianas, ou enterrados, junto com seus pais, em cemitérios
improvisados da Sicília – ao imigrante, vivo ou morto, só se toca com
luvas de borracha - a meio caminho entre a miséria e o terror e um
impossível futuro a eles arrebatado pela morte - os fantasmas dos
meninos e meninas de Lampedusa poderiam assombrar, com sua lembrança, a
consciência européia.
Se a Europa tivesse consciência."
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