Duas personagens de mulheres atravessaram Cannes como se tivessem
como banda sonora da sua imparável caminhada explicação alguma a não ser
o desejo – uma delas até dança ao som de
Lust for life, de Iggy Pop/David Bowie. Uma delas é Sônia Braga, no
Aquarius de Kleber Mendonça Filho. A outra é Isabelle Huppert no
Elle de Paul Verhoeven.
Os
filmes têm ambos por trás a dedicação de um mesmo produtor, Saïd Ben
Saïd, e ficam como os dois melhores do concurso (que o júri no domingo
se desembarace como deve ser do dilema), mas o fulminante é a
estranhíssima e luminosa possibilidade de pertença ao mesmo clube. O de
duas actrizes de tradições tão opostas - o fluxo sensual da brasileira, a
meticulosidade cerebral da francesa -, mas que são património de que os
filmes se servem e também de que os filmes são feitos. É a
possibilidade de diálogo entre um que é diurno e sinistro (o brasileiro)
e o outro que é obscuro e espirituoso (o filme do holandês que já foi
americano e que agora também é um pouco francês). De tal forma que,
agora, quando tudo está a acabar em Cannes,
Aquarius e
Elle parecem seguir livremente um corpo. Ambas,
Sônia e
Isabelle, poderiam dizer que "a vergonha não é um sentimento
suficientemente forte para nos impedir de fazer o que quer que seja",
que é o que, na verdade, diz a personagem de Isabelle que é também
aquela que dança
Lust for life. Em
Elle, porque hoje é dia de
Elle, a primeira vez que o realizador Paul Verhoeven está em competição em Cannes.
Embora já tenha aberto a edição de 1992 (
Instinto Fatal)
nos seus tempos de Hollywood, chega nesta edição ao festival como se
fosse um pouco francês, embevecido com os franceses que lhe permitiram a
experiência que resultou neste seu segundo filme europeu, depois de
Black Book,
em 2006, que marcou o regresso de Hollywood. Sejamos directos e
estritamente informativos, está tudo embevecido aqui: ele com os
actores, os actores com ele - cheios de episódios, na memória, de
inteligência e humildade na rodagem que, pelos vistos, terá sido um
milagre -, e embevecidos estão os que viram o filme. Verhoeven está em
estado de graça na Croisette, ponto final. Portanto, está em estado de
graça no cinema.
Confirmou-se neste microcosmos a entronização do
seu estatuto, que já vinha sendo anunciado (a homenagem que lhe fez o
IndieLisboa há meses foi justamente um dos sinais). E em estado de graça
está também Isabelle Huppert, que ao falar do que fez no filme, e de
como o faz no filme, revela o essencial do que é
Elle – uma das
coisas que Verhoeven faz, ele que vem transformando pedaços de corpos
híbridos em filmes e estes na sua obra, é “isabellehuppertar”
Elle. É por isso que quem veja o
trailer, quem veja as fotos, pode “cheirar” qualquer coisa do
Haneke de A Pianista, como um
déjà vu, e isso pode ser um risco que
Elle corre,
embora não haja nada aqui de experiência clínica. Isabelle, então,
disse mais ou menos isto: que Verhoeven não lhe deu grandes explicações
sobre a sua personagem, que Verhoeven, o máximo que faz, é “levantar
hipóteses”, e que talvez seja esse o “segredo” (o segredo Huppert?),
seguir em frente, continuar, reagir aos acontecimentos, utilizar a sua
sagacidade. Como se se colocasse, ela, Isabelle Huppert, ao lado de
Michelle, a sua personagem, ao lado do obscuro desejo dela,
e
caminhassem as duas juntas, lado a lado, que é o máximo que pode fazer
(que é o máximo que o espectador pode fazer, não há hipótese de
empatia), em vez de acreditar que é possível estar dentro dela e
explicá-la.
Michelle lidera uma empresa de jogos de vídeo. Um dia é
violada por um homem mascarado, mas vê-lhe o pénis, não circuncidado.
Michelle arma-se com machados para se defender, mas recusa apresentar
queixa à polícia. Só depois se percebe porquê - há um passado monstruoso
na sua vida, em que a polícia entrou pela sua intimidade adentro,
quando o pai, era ela adolescente, se revelou um
serial killer,
e Michelle não quer cruzar-se de novo com ela no espaço público.
Continua em frente, com os amantes, mesmo que sejam maridos de amigas,
ou, fazendo a sua própria investigação privada, pura e simplesmente
obrigando homens a baixar as calças para encontrar a prova do delito num
pénis - não há nada que seja suficiente na vergonha para cortar nas
pulsões e obrigar à reconfiguração da sua (a)moralidade.
Até que um dia Michelle encontra, no
affair com o vizinho, o violador. O que se segue é uma história de amor doentia, daquelas em que no final
da
violência se exclama, em voz ardente, que foi necessário tudo isso,
todo esse caminho, para chegar ali? Mais não se pode dizer sobre o que
acontece. Não por causa dessa coisa que se chama
spoiler, mas porque na verdade continuamos sem saber quem é Michelle, o que é que a leva a fazer e o que é que ela faz.
Recordamos as palavras de Paul Verhoeven, na entrevista que deu ao PUBLICO em Abril,
quando, a propósito de uma possível genealogia entre as personagens dos
seus filmes, que suspendem qualquer valor ou moral (que assim se
suspendem…) em favor de uma acção, de um desejo, respondia: “A questão é
que a personagem de Huppert não é revelada. Vemos o que ela faz,
espantamo-nos com isso, mas não podemos dizer isto ou aquilo. Foi isso
que me seduziu, aceitarmos o que ela faz sem sermos capazes de saber
porque é que o faz.”
É esse o toque de
Elle, a forma como, a partir de um livro de Philippe Dijan, a
mise- en scène de Verhoeven – a palavra é importante aqui, porque este é um filme “francês” do holandês, tal como
The Black Book
era um filme holandês híbrido por causa da experiência em Hollywood –
se constrói toda sobre, e com, essa impossibilidade de revelação.
Tirando disso a sua energia e movimento, aquilo que o leva a continuar.
Neste processo, talvez, de se “afrancesar”, que é uma reviravolta que
vai mostrar um Verhoeven irreconhecível (e no entanto está lá tudo: o
destemido, o sentido de humor…), decanta o seu universo, linhagem e
personagens, como quem se separa de impurezas sólidas, reenviando para o
grafismo
trash e
nasty dos jogos de vídeo que a espaços surgem (o inconsciente do filme?) aquilo que, em tempos de
Robocop,
Starship Troopers, de
Showgirls, era imperioso para os seus sentidos e êxtase, dele e nosso: a explicitação.
Como pode o júri resolver?
O que fazer com
Aquarius e com
Elle,
como escolher? Como é que um prémio às actrizes pode “resolver” o
posicionamento dos filmes no palmarés – anunciado domingo por um júri
presidido por George Miller –, dessa forma resolvendo dilemas e escolhas
e “despachando” uma Palma de Ouro para outro lado?
Toni Erdmann,
de Maren Ade, era até hoje o filme mais votado pelas várias listas de
críticos que se reúnem em diferentes publicações. Eis um filme com uma
mulher de desejo preso, mal na sua pele – a interpretação de Sandra
Hüller também deve contar para o jogo dos prémios, e se calhar temos de
começar a concluir que tudo se vai decidir a partir delas.
Dito isto, chegaram também ao coração de uma maioria de jornalistas e críticos, pela forma como se expressaram,
Paterson, de Jim Jarmusch,
Ma Loute, de Bruno Dumont, I, Daniel Blake, de Ken Loach, e
Sieranevada, do romeno Cristi Puiu. E o que poderá
Le Client, de Asghar Farhadi, dois anos depois de
O Passado, que deu o prémio de interpretação em Cannes a Bérénice Bejo, e depois do
Óscar de Melhor Filme Estrangeiro a Uma Separação
(ainda o seu melhor filme) em 2012? A questão com o filme do iraniano é
semelhante à que pode levantar, por exemplo, o filme do romeno: a
sensação de que já estiveram aqui, que não se moveram um milímetro e que
o que fizeram foi explicitar sinais que podem tornar os filmes viagem
de reconhecimento.
É de novo a classe média iraniana, de novo a
implosão de uma família a partir de um incidente que vai afectar um
casal (um encenador e uma actriz) que muda de apartamento, a erupção de
um rosto mais sombrio e intolerante sob a máscara da cultura e da
tolerância. Plano mais bonito do filme: uma porta aberta pela qual vai
entrar uma personagem decisiva para o que vai acontecer no filme e ao
casal, mas o realizador corta antes de a figura aparecer, ficamos com a
porta aberta na retina, a possibilidade de invasão, coisa não nomeada,
mas irreversível… Mas o filme, porque está sempre a ir e vir da ficção
para a peça que o casal encena (
A Morte de um Caixeiro Viajante, de Arthur Miller), a carregar-se de significação, raramente é assim.