‘A Dama das Camélias’
Como ouvidoria de luxo de
privilegiados, o Supremo ameaça a ordem democrática...
PAULO DELGADO*, O
Estado de S.Paulo
11 Julho 2018 |
05h00
Toninho Drummond, jornalista admirado
de quem fui amigo, contou-me certa vez que em 1937 o Cine Glória, da sua Araxá,
anunciou a apresentação do filme A Dama das Camélias, dividido em duas partes.
Sucesso total, e antes da segunda sessão na mesma semana, a mulher mais
cobiçada da cidade confessou, sedutora, ao jovem operador do cinema que seria a
pessoa mais feliz do mundo se Marguerite, a heroína, não morresse no final.
Seduzido, o operador foi à luta munido de uma tesoura: reeditou o drama para
fazer a vontade da insinuante dama. Cortou as cenas finais, substituiu-as por
outras e assim Greta Garbo termina aos beijos com Robert Taylor, transformando
a tragédia em farsa. Terminada a segunda sessão choveram protestos de leitores
da obra original de Alexandre Dumas. O prefeito Antônio Vilas Boas, nomeado
depois ministro do STF, estimulou a ira do promotor Christiano Barsante a agir
contra o manipulador apaixonado. Chamaram o projecionista. “Semana passada
assisti a este mesmo filme em Uberaba. A atriz morre tuberculosa no final. E
aqui não?”, interpelou ameaçador, como é costume entre promotores aliados de
juízes. “Uai, doutor, fulminou o responsável pela projeção, “ela sarou, todo
mundo sabe que o clima de Araxá é muito melhor do que o de Uberaba”.
Não precisamos mexer na fita, caçar
vilões com impropérios, manipular sonhos, usar o humor para acostumar o País a
cretinos. Não queremos um leão, tigre, águia ou abutre que domine por violência
e medo. Precisamos de um cisne que atravesse as águas com grandeza e coragem, a
majestade de saber que não fará mau uso do seu poder. Não precisamos de uma
geração de vingadores, nem de inimigos arrogantes do mal. Precisamos de uma
República tranquila onde o povo não tema seu governante e veja nele
sinceridade, concórdia e compromisso.
O País segue joguete da marca de Caim.
Não há conflito elevado entre concepções do Direito e sua relação com as
questões morais. Há soberba de infelizes juízes que, devendo obséquios a
culpados, levam a magistratura a contribuir para a radicalização política
aceitando petições atravessadas por poderosos como se a toga fosse traje de
bordel sem alvará.
Há um dilaceramento provocado pela
política na alma do brasileiro que o fez deixar de acreditar na superioridade
do trabalho e na simplicidade do dever. A população não está conseguindo
acompanhar o ritmo da vida cada vez mais dura, ostensivamente miserável para o
batalhador, suntuosamente privilegiada para o jogador. A riqueza sem lastro ou
refinamento desmoraliza a vocação e o esforço para a produtividade. Todo dia
quem trabalha é assediado por jogos obscuros promovidos pelo tumulto de
personalidades malévolas que ocupam postos muito altos nas principais
instituições. Autoridades incapazes de enfrentar a batida do tempo deixam
desconsolada e confusa a juventude, que se agride, se mata, se droga, diante
deste naufrágio que virou a vida normal entre nós.
A popularidade de um político preso por
corrupção beira o obsceno. Manipula o filme da cadeia seguro de que fundou novo
conceito do uso do Estado e da Justiça. Deu identidade política ao desprezo
pelo plausível e ancorou a farsa no governo como se fosse indignação. Impôs a
improvisação e o privilégio como política pública e viu todas as classes se
adaptarem sem dificuldade. Criou outra pele para a Nação, sob o açoite do
interesse pessoal.
Assim, sem fundamentar a reunificação
nacional num plano altamente espiritual em que as instituições públicas
renunciem a esse poder viciado que receberam quase como cúmplices, não será
possível mudar o timbre de ódio, inveja e bajulação que prevalece. O privilégio
é a causa da pane do nosso boletim civilizatório.
Para outubro a confusão ampliada por
juízes impunes já apresenta 18 candidatos a presidente com destaque para um
falacioso destrutivo, um experiente meio bravo, um eficiente gestor traído, uma
solitária de bom espírito, um preso que amedronta o Supremo com seus segredos e
usa esse medo para solidificar a versão de que o cálculo político da sua
condenação é superior à sua desonestidade como encarcerado. A perda de élan da
Justiça diante do réu tornou-se um caso pejorativo. Parem, o Brasil não tem
mais força para revidar a esse carrasco sem dó que é a corrupção velada pela
Justiça.
São 35 partidos em campanha, incapazes
de dar consistência partidária às ideias dos candidatos. Nenhuma preocupação
com a articulação parlamentar para produzir a maioria política que estabilize
um governo no presidencialismo. Candidato sério não se pode considerar
independente da desordem partidária. Quem não estrutura sua base de apoio desde
já, para legitimá-la pela urna, terá de fechar negócios depois de eleito, na
feira que é a elefantíase do sistema político.
A verdade é um patrimônio da tradição.
E faz parte da verdade que onde há reeleição é fundamental a função
presidencial no concerto do processo sucessório, ou como candidato, ou como
maestro. Especialmente agora que a eleição, garantida pela serenidade do
presidente, se tornou a única premissa para que a ordem constitucional continue
sendo considerada.
O Supremo, como ouvidoria de luxo de
privilegiados, ameaça a ordem democrática ao querer harmonizar moralismo com
autointeresse. Nada teme, “sobe aos céus e joga Deus por terra” para seguir na
sua atmosfera de fogueteiro cuja função é agravar o desalinho do eixo
gravitacional do governo.
De forma engenhosa, Temer construiu um
modelo de equilíbrio entre uma agenda reformista na economia e uma postura
conservadora na política, e se tornou o mais barato presidente do País em
relação aos mecanismos tradicionais de obtenção de apoio parlamentar para fazer
reformas. O que incomodou os que não querem mudança e partiram para manipular o
andamento do filme sucessório, estimulados pelo fantasma regressivo que
intimida maus juízes.
* PAULO DELGADO É SOCIÓLOGO, COPRESIDENTE DO
CONSELHO DE ECONOMIA, SOCIOLOGIA E POLÍTICA DA FECOMERCIO-SP. E-MAIL:
CONTATO@PAULODELGADO.COM.BR
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