Opinião

Livro de Zuenir Ventura revisitado: que país é esse, 50 anos após 1968?

” (…) Brasil, onde o passado nunca passa” (Tereza Cruvinel, no Jornal do Brasil desta quarta-feira).
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Durante uma hora e meia na tarde de terça-feira, na gravação do Roda Viva que vai ao ar na próxima segunda, o jornalista e escritor Zuenir Ventura deu uma verdadeira aula afetiva sobre o Brasil dos últimos 50 anos, e nos fez pensar sobre o que fizemos do nosso país.
Mestre Zu, como é chamado pelos amigos, do alto dos seus 87 anos bem vividos, está relançando em edição especial o seu já clássico 1968 _ o Ano Que Não Terminou (Editora Objetiva), trinta anos após a publicação do livro.
Falando baixo e pensando muito antes de falar, como se estivesse pedindo licença para emitir suas opiniões, o jornalista que não gosta de ser chamado de veterano, parecia um jovem procurando motivos e sinais para não perder as esperanças neste país que, definitivamente, não deu certo, pelo menos para a nossa geração.
Já quase no final, quando citei uma frase de Antonio Callado em sua última entrevista à Folha, pouco antes de morrer _ “Lutei todas as lutas do lado certo. Perdi todas…” _ e lhe perguntei se diria o mesmo, Zuenir levou algum tempo para responder que sim.
O pior de tudo para ele foi o grau de intolerância a que chegamos, com o país rachado ao meio em mil pedaços, chegando a separar amigos e parentes queridos, um tema recorrente nas suas intervenções durante o programa. Em 1968, ao contrário, tínhamos um inimigo comum.
Zuenir consegue achar graça até da sua prisão depois da decretação do AI-5, em dezembro de 1968, e do dossiê mirabolante que o DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) fez sobre a sua pessoa relatando um poder de contratar e demitir que ele nunca teve nas redações da época.
“Pensavam que eu era o Roberto Marinho…”, conta e ri dele mesmo.
A prisão duraria poucos dias graças à intervenção do amigo Nelson Rodrigues, bem relacionado com os militares, que conseguiu a soltura de Hélio Pellegrino, outro amigo, que se recusou a deixar a cadeia se Zuenir não saísse junto. Saíram os dois.
Era um tempo em que amigos eram solidários mesmo quando estavam em lados ideológicos opostos e, neste sentido, pioramos muito.
Pioramos e melhoramos em muitas outras coisas, como é natural que aconteça num período tão largo de tempo, este meio século de perdas e conquistas, vitórias e derrotas, progressos e atrasos, como o que estamos vivendo no momento, sem saber para onde vamos.
Saí do estúdio com a sensação de que o céu nunca esteve tão escuro à nossa frente, afundados numa crise sem fim e, o que é pior de tudo, sem perspectivas de mudança até onde a vista alcança.
Apesar de tudo, Zuenir não é pessimista sobre o futuro da geração da sua neta Alice.
Ao contrário, procura encontrar sinais de vida em lutas identitárias como a de Marielle Franco, a vereadora assassinada no Rio, exatamente por remar contra a maré em defesa dos mais fracos e oprimidos.
Zuenir admite que não a conhecia antes do bárbaro crime, noticiado em todo o mundo, para mostrar que nós jornalistas não sabemos tudo o que está acontecendo, e devemos ser mais humildes, tantas vezes somos surpreendidos pelos fatos.
Sem saber dizer de onde, nem como, nem com quem, o velho amigo acredita que um dia o jogo vira, como aconteceu em maio de 1968, quando de uma hora para outra explodiu na França o agora histórico movimento estudantil contra o sistema vigente, revolucionando usos e costumes no mundo todo, algo que ninguém podia prever.
De vez em quando dando uma olhada para a platéia, onde estava sua inseparável mulher Mary, em busca de aprovação para o que dizia, o autor de Cidade Partida e Sagrada Família, que passou boa parte da carreira nos segundos cadernos, só encontrou uma explicação para o paradoxo da grande explosão da cultura brasileira ter ocorrido entre 1964 e 1968, já em plena ditadura militar.
“Pergunta difícil essa… Acho que os momentos de adversidade estimulam a criação…”, foi pensando alto sempre em voz baixa, ao falarmos da bossa nova, de Tom e Vinicius, de Chico, Gil e Caetano surgindo, do cinema novo de Glauber Rocha e companhia bela, dos grupos de vanguarda no teatro de São Paulo e do Rio, do jornalismo revolucionado nas redações da Realidade, do Jornal do Brasil, da Última Hora, do Jornal da Tarde, publicações que desapareceram das bancas.
O JB até voltou em nova versão outro dia, mas já não conta com o elenco estrelado do qual Zuenir Ventura fez parte por muitos anos, retrato em branco e preto de um Rio de Janeiro que não existe mais.
Assim como os partidos políticos e a chamada sociedade civil, a cultura brasileira também foi se aviltando nos últimos anos. E agora, o que resta?
Basta constatar que o troglodita Jair Bolsonaro, primeiro militar a concorrer a presidente após a redemocratização, lidera as pesquisas sem Lula para ver o ponto de degradação a que chegamos.
Resta-nos a lembrança dos grandes comícios da Diretas Já, dos grandes festivais de música popular brasileira, das viagens a trabalho que fizemos juntos nas caravanas de Lula pelos ermos mais sofridos do país, da coragem do menino Genésio, a testemunha-chave do assassinato de Chico Mendes no Acre, que Zuenir acabou levando para sua casa no Rio para não ser morto também.
Mais do que testemunha ocular, Zuenir é personagem importante de alguns dos momentos mais marcantes da história recente do país.
Por isso, vale a pena ver este Roda Viva, que vai ao ar às 22h15 do dia 30, pela TV Cultura, e ler ou reler o livro 1968, com caderno de fotos e prefácio inédito, a ser lançado no dia 2 de maio.
Sem querer ser saudosista ou nostálgico, fiquei com a ligeira impressão de que nós todos já fomos melhores.
Pelo menos, a gente lutava por nossos ideais quando as ameaças eram muito maiores.
Vida que segue.

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