Inspiração e transpiração
Thomas
Edison cunhou a celebérrima frase: "Génio é 1% inspiração e 99%
transpiração." A ideia aplica-se a muita coisa, por exemplo em política,
mas aí as percentagens variam muito, como mostram Trump, Costa e muitos
outros.
Governar
uma sociedade dá muito trabalho. É esforço longo, intenso, detalhado.
Para cada assunto é preciso estudar a situação, compreender o problema,
analisar os detalhes. Depois, considerar alternativas, conceber
respostas, gizar estratégias, ponderar custos, fases, efeitos. Segue-se a
morosa negociação com forças e interesses, para angariar apoios,
equilibrar compromissos, compensar prejuízos. Finalmente surge a
implementação, com medidas, detalhes, atrasos, adiamentos, imprevistos,
correcções. Em geral, a inspiração inicial não chega a 1% do processo.
Esta
verdade é patente para quem enfrente qualquer problema social, mesmo
numa aldeia. Só que, como nas invenções de Edison, a evidência escapa à
maior parte dos observadores, seduzidos por romances idealistas.
Cidadãos, analistas e políticos, sobretudo em épocas de ruptura como a
actual, são dominados pelo mito confortável de considerar os problemas
nacionais resolúveis com novo líder, estratégia inédita, revolução
original. Achando que uma inspiração diferente basta para tudo se
resolver, esquecem cerca de 99% das questões. Assim, múltiplos
dirigentes empolgados, com ideias radicais, acabaram atolados no
complexo labor político quotidiano.
Caso
extremo nesta estrutura vem hoje da própria terra de Edison, onde a
política sofre há anos de crescente excesso de inspiração e défice de
transpiração. Donald Trump, goste-se ou deteste--se, é um dos mais
inspirados líderes actuais. Os seus slogans (make America great again,
America first) e planos (muro mexicano, NAFTA, Obamacare) dominam as
notícias instantânea e repetidamente. Ninguém fica indiferente,
inspirando intensa adesão ou repulsa.
A
inspiração de Trump é o seu elemento central mas não é aí que reside a
catástrofe desta administração. A derrocada está a vir, não da
ideologia, aliás ainda por implementar, mas da falha do aparelho
decisório. Trump não transpira. Ele foi eleito devido à profunda
desconfiança dos americanos com o aparelho de Washington. A desmontagem
desse aparelho gerou um governo paralisado, à deriva, sem propostas
concretas, medidas coerentes, soluções plausíveis. Aliás, a máquina
política nem sequer está completa, com enorme atraso na nomeação de
centenas de postos, que compete ao Presidente, e os poucos colocados são
sucessivamente substituídos. Trump é o anti-Edison: 99% de inspiração,
1% de transpiração.
Se os EUA
estão num extremo, a Europa mostra diversidade de posições. Alguns, como
Cavaco, Major ou Kohl seguiram a linha de Edison, transpirando para
vencer os desafios da adesão europeia, como Passos face às imposições da
troika. Tsipras, face à mesma ameaça, começou como Trump, mas inverteu
as percentagens e começou a trabalhar. Pelo seu lado, os nossos dois
últimos governantes socialistas seguiram linhas algo originais.
José
Sócrates, tribuno apaixonado e inspirado, centrou a sua carreira
política em ideais e promessas. O consulado socialista de 2005 a 2011
foi cheio de paixões e planos, programas e confrontos. Por isso ele foi
sempre intensamente amado e odiado. Mesmo hoje, seis anos após a queda, o
antigo primeiro-ministro mantém--se o político mais controverso do
país, suscitando mais emoções que os no activo. Nenhum ex-líder, em 40
anos de democracia, dominou tanto as páginas dos jornais enquanto
simples cidadão.
Com excesso
de inspiração, o defeito do seu percurso foi falta de transpiração.
Objectivos e promessas eram grandiosos, mas escasseavam estudo,
concepção, elaboração e execução. As ideias multiplicavam-se, mas sempre
improvisadas, descosidas, mal acabadas. O sucesso e o optimismo, apesar
de intensos, rapidamente se mostraram ilusórios. O crescimento
socrático nunca descolou, acabando em falência nacional. Sócrates, longe
ao extremo de Trump, foi 70% inspiração e 30% transpiração.
Talvez
por ter aprendido com esses erros, o actual governo segue caminho
diverso e, em grande medida, oposto. Costa assume um perfil modesto,
cordato, negociador. Omitindo os projectos empolgantes e programas
decisivos, dedica-se a reduzir o défice, cortar o desemprego, aprovar
reformas morosas e detalhadas.
No
entanto, grande parte da transpiração de Costa é dedicada a inverter as
promessas das forças radicais que compõem a maioria. O governo,
inspirado pelo PCP e BE, prometeu eliminar a austeridade, reverter
reformas laborais, lançar crescimento baseado no consumo. Como essas
ideias são fantasias evidentes, a sua política concreta tem sido
exactamente inversa, procurando cortar a despesa, dar garantias públicas
a fundos especulativos, etc. Apanhado nas contradições, Costa tem sido
70% inspiração e 70% transpiração, anulando 40% da primeira. No final
arrisca-se a perder as duas.
Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico (João Cesar das Neves)
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