Para o juiz federal Sergio Moro, responsável pela Operação Lava Jato,
falta interesse da classe política brasileira em combater a corrupção.
"Lamentavelmente, eu vejo uma ausência de um discurso mais vigoroso por
parte das autoridades políticas brasileiras em relação ao problema da
corrupção. Fica a impressão de que essa é uma tarefa única e exclusiva
de policiais, procuradores e juízes", afirmou Moro em entrevista
concedida à
Folha e a outros integrantes do grupo internacional
de jornalismo colaborativo "Investiga Lava Jato" –o jornal é um dos
coordenadores da iniciativa.
Rebatendo críticas sobre o fato de ter fixado benefícios para réus que
ainda estão negociando delação premiada, o juiz afirmou que "o direito
não é uma ciência exata".
Segundo ele, a prisão do ex-presidente da Câmara dos Deputados Eduardo
Cunha (PMDB-RJ) mostra que não há investigações seletivas contra o PT.
Moro defendeu ainda o levantamento do sigilo da interceptação telefônica
da conversa entre o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e a então
presidente Dilma Rousseff, em 2016. Segundo o magistrado, "as pessoas
tinham direito de saber a respeito do conteúdo daqueles diálogos".
Antes da entrevista, Moro disse que resolveu falar ao grupo "para
incentivar o trabalho cooperativo de jornalistas investigativos".
*
Folha - Há sentenças na Lava Jato que não se baseiam apenas em
documentos, mas também em outros tipos de provas. Um exemplo é a
condenação do ex-presidente Lula, que aponta que os benefícios
concedidos ao ex-presidente têm como "única explicação" a corrupção na
Petrobras. Qual sua posição sobre o uso de presunções desse tipo?
Sergio Moro - Sobre a sentença do ex-presidente, tudo o que eu
queria dizer já está na sentença, e não vou fazer comentários.
Teoricamente, uma classificação do processo penal é a da prova direta e
da prova indireta, que é a tal da prova indiciária. Para ficar num
exemplo clássico: uma testemunha que viu um homicídio. É uma prova
direta.
Uma prova indireta é alguém que não viu o homicídio, mas viu alguém
deixando o local do crime com uma arma fumegando. Ele não presenciou o
fato, mas viu algo do qual se infere que a pessoa é culpada. Quando o
juiz decide, avalia as provas diretas e as indiretas. Não é nada
extraordinário em relação ao que acontece no cotidiano das varas
criminais.
O ministro Gilmar Mendes tem sido um dos principais críticos à Lava
Jato no Supremo e afirmou que a operação criou um "direito penal de
Curitiba", com "normas que não têm a ver com a lei".
Não faria réplica à crítica do ministro. Não seria apropriado. Juízes
têm entendimentos diferentes. Não obstante, nos casos aqui julgados, não
há direito extraordinário. Na Lava Jato, para a interrupção do ciclo de
crimes, era necessário tomar algumas medidas drásticas –entre elas, por
exemplo, as prisões antes do julgamento. E as decisões têm sido, como
regra, mantidas.
O sr. fixou um tempo máximo de prisão a três réus que negociam
delações, caso o acordo deles vingue. A medida foi criticada por
advogados que entenderam que isso equivalia a um estímulo à delação e
que não cabia ao juízo interferir nessa negociação. Por que tomou essa
decisão?
Não ingressei em nenhuma negociação. Naquele caso, houve colaboração mas
não havia um acordo final. O próprio Ministério Público pediu que fosse
reconhecida a colaboração e dado o benefício.
Mas o benefício extrapolou um processo específico. O sr. estipulou
uma pena máxima para todos os processos a que eles respondiam.
Eu justifiquei o que fiz na decisão. Agora, é preciso entender que o
direito não é uma ciência exata. Às vezes, pessoas razoáveis divergem.
Faz parte da aplicação do direito.
Esse tipo de decisão, sobre benefícios a réus, provas indiciárias,
prisões preventivas, não faz parte de uma inflexão que a Lava Jato está
trazendo ao direito penal?
Não, de forma nenhuma. O que a Lava Jato revela é que a impunidade em crimes de corrupção no Brasil não é mais uma regra.
O que pode representar uma ameaça à Lava Jato?
Lamentavelmente, eu vejo uma ausência de um discurso mais vigoroso por
parte das autoridades políticas brasileiras em relação ao problema da
corrupção.
Fica a impressão de que essa é uma tarefa única e exclusivamente de
policiais, procuradores e juízes. No Brasil, estamos mais preocupados em
não retroceder, em evitar medidas legislativas que obstruam as
apurações das responsabilidades, do que propriamente em proposições
legislativas que diminuam a oportunidade de corrupção. Vejo no mundo
político uma grande inércia.
Folha - Sobre as escutas que envolveram os ex-presidentes Lula e
Dilma, o sr. escreveu que o conteúdo revelava tentativas de obstruir
investigações. É possível entender que a medida de tornar público esse
conteúdo tinha como objetivo proteger a Lava Jato?
A escolha adotada desde o início desse processo era tornar tudo público,
desde que isso não fosse prejudicial às investigações. O que aconteceu
nesse caso [dos grampos de Dilma e Lula] não foi nada diferente dos
demais. As pessoas tinham direito de saber a respeito do conteúdo
daqueles diálogos. E por isso que foi tomada a decisão do levantamento
do sigilo.
Um efeito indireto ao dar publicidade para esses casos foi proteger as
investigações contra interferências indevidas. Afinal de contas, são
processos que envolvem pessoas poderosas, política e economicamente. Na
prática, pode haver tentativas. Então, tornar tudo público também acaba
funcionando como uma espécie de proteção contra qualquer obstrução à
Justiça. E isso é muito importante.
Foi seguida a Constituição. Dentro de uma democracia liberal como a
nossa, é obrigatório que essas coisas sejam trazidas à luz do dia.
Folha - Na Lava Jato há mais de 150 acordos de delação premiada e
muitos dos colaboradores ficarão presos por dois anos. Logo parte deles
vai voltar às ruas. Quando isso acontecer, não pode haver uma sensação
de impunidade, de que o crime compensa?
A colaboração de criminosos vem com um preço: ele não colabora senão
pela obtenção de benefícios. Isso faz parte da natureza da colaboração.
Muita gente não tem acordo nenhum, continua respondendo aos processos,
alguns foram condenados, estão presos. Essas pessoas também vão sair da
prisão um dia. Faz parte do sistema. O que acho que tem que ser
comparado é que, no passado, como regra, o que havia era a impunidade.
As pessoas nem sequer sofriam as consequências de seus crimes. Em muitos
casos, nem sequer eram descobertas. A sensação de impunidade era ainda
maior.
Raúl Olmos, da ONG "Mexicanos contra a Corrupção" (México) - No
México não há nenhum efeito da Lava Jato. Qual a sua opinião sobre um
país em que nada foi feito?
É difícil avaliar o que ocorre em outros países, não tenho detalhes de
tudo. A globalização também acaba levando ao fenômeno da
transnacionalização do crime. Se é assim, o combate aos crimes também
tem que ser transnacional e envolver cooperação.
Milagros Salazar, do portal "Convoca" (Peru) - Como fazer quando há
quatro ex-presidentes sob suspeita e empresários que pagaram pela
corrupção, como é o caso do Peru, para que não haja a suspeita de que só
a alguns se investiga?
Não tenho como avaliar o trabalho da Justiça no Peru. No Brasil, por
vezes, há uma crítica de que a Justiça estaria atuando de maneira
seletiva. Mas os processos são conduzidos com base em fatos e provas.
Por exemplo, apesar das críticas de que há uma intensidade maior em
relação a agentes do PT, temos preso e condenado um ex-presidente da
Câmara [Eduardo Cunha], que era tido como inimigo do PT. Então, as
críticas são equivocadas.
Outra coisa importante: o que as empresas brasileiras fizeram foi
reprovável, mas há de se louvar a atitude delas quando resolvem
colaborar. Não é correto vilificar as empresas brasileiras como se
fossem as únicas no mundo que pagam propinas.
Adérito Caldeira, do jornal "@Verdade" (Moçambique) - Até a Lava
Jato, a Odebrecht e o ex-presidente Lula eram considerados, pelo povo de
Moçambique, benfeitores. Como o sr. se sente, de certa forma,
desfazendo essa imagem?
O fato de essas empresas terem pago suborno a autoridades públicas nos
países é algo reprovável. Mas isso também não desmerece tudo o que foi
feito. Se a empresa de fato se comprometer a mudar seu comportamento,
isso vai representar um ganho não só para ela, mas para os países nos
quais os investimentos permanecerem. Aí haverá investimentos com uma
prática de negócios mais limpa.
Emilia Delfino, do jornal "Perfil" (Argentina) - A lei argentina não
permite que se faça um acordo com as autoridades brasileiras em que se
deixe de processar a Odebrecht. Nesse caso, qual é a alternativa das
autoridades para buscar as provas no país?
Não aceitando essa condição, os países vão ter que desenvolver seus
próprios casos, com seus mecanismos de investigação, e eventualmente
podem ser bem-sucedidos. Eu não sei o que aconteceu na Argentina, mas
isso de um país estabelecer condições não é algo incomum na cooperação
internacional.
Lisseth Boon, do site "Runrunes", e Jesús Yajure, do site "El Pitazo"
(Venezuela) - Foram usados laranjas para pagar propinas fora do Brasil?
Não tenho detalhes do que aconteceu em outros países. É um método comum
na lavagem de dinheiro utilizar uma pessoa interposta, um "presta
nombres", para recebimento de vantagem indevida. A variedade dos
procedimentos é inesgotável.