O acidente pavoroso
Michel
Temer ter definido o massacre de 56 presos no Complexo Penitenciário
Anísio Jobim, em Manaus, como "um acidente pavoroso" é um erro porque
uma tragédia anunciada não pode ser jamais considerada "acidente". No
entanto, mais grave ainda foi ele ter achado o que achou apenas 83 horas
depois do ocorrido, já meio mundo, incluindo o Papa Francisco, se havia
pronunciado.
Nessas 83 penosas horas
em que não reagiu à segunda maior tragédia do género no país, só
superada pelo massacre do Carandiru, de 1992, Temer deixou as
explicações nas mãos do seu ministro da justiça, o governante que,
contrariando a opinião dos especialistas e a realidade dos factos, não
vê na guerra entre organizações criminosas a motivação do massacre.
Alexandre
de Moraes, que nos últimos meses prometeu erradicar toda a maconha do
Brasil, numa tirada que deixou meio país a rir (sem sequer precisar de
fumar um "baseado"), chegou ao governo por indicação de um dos clientes
do seu escritório de advogados, o ex-presidente da Câmara de Deputados
Eduardo Cunha, o tal envolvido em 11 de cada dez casos de corrupção no
país e hoje detido. O passado, portanto, não recomenda Moraes.
Mas,
por falar em passado, há longínquos 25 anos um ainda pouco grisalho
Michel Temer tomava posse como secretário de segurança na prefeitura de
São Paulo imediatamente após Carandiru. Na altura, decidiu que os
polícias que executaram 111 detidos desarmados mereciam "um período de
repouso e de meditação". Continuam impunes até hoje.
As
83 horas de silêncio de Temer não foram mero factoide político. Ainda o
presidente pensava no que dizer - ou rezava para conseguir escapar sem
precisar de dizer nada - e já pais, mulheres e filhos das vítimas
corriam pelas morgues de Manaus no mais tétrico dos puzzles: distinguir a
que corpo pertencia cada cabeça, cada braço, cada perna decepada na
chacina. Ainda o presidente da República pensava no que dizer e já
presos de outra cadeia de outro estado planeavam o massacre seguinte,
com direito a 33 mortos e a corações e tripas arrancados.
O
colunista do jornal Folha de S. Paulo Roberto Dias escreveu que quem
não tem nada a dizer sobre o que se passa dentro das prisões
provavelmente também não tem nada a dizer sobre o que se passa fora
delas. A jornalista Carol Pires defendeu no The New York Times que Temer, mesmo presidente, se comporta como deputado.
De
facto, Temer subiu na política falando pouco em público - raramente foi
a votos, pisou palanques ou exerceu cargos executivos - e muito em
privado - nos átrios do Congresso Nacional, onde o nível das discussões
faria do casal Underwood de House of Cards um monge beneditino e uma
freira clarissa.
Talvez por isso,
também na penúltima tragédia brasileira, o acidente aéreo de Medellín
que vitimou 71 membros da comitiva da Chapecoense, o presidente não
tenha sabido o que fazer. Na véspera de aterrar em Chapecó, mandou os
familiares das vítimas irem ao aeroporto receber condolências para
evitar o velório, no estádio, e correr o risco de ser apupado. Teve de
ser o pai de um jogador morto no acidente a dar uma lição de estadismo
ao vetusto presidente: "Não vou a lado nenhum, ele se quiser que venha
ao estádio, os importantes somos nós, não ele." Temer lá foi mas saiu
por entre os intervalos da chuva intensa que se abateu sobre a chorosa
cidade. Não foi apupado, como receava. Muito pior: foi ignorado.
Manaus
e Chapecó provam que é mais fácil chegar a presidente convencendo nos
bastidores 594 congressistas (60% deles com cadastro judicial) do que
enfrentando milhares de cidadãos nas ruas ou conquistando milhões de
votos nas urnas. Mas provam também que na era democrática a falta de
votos persegue os políticos com mais vigor do que a oposição ou a
imprensa. O trocadilho, fácil, correu no Brasil nesta semana: o governo
Temer é um acidente pavoroso.
João Almeida Moreira (Do jornal Diário de Notícias de Portugal)
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