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'El País': Dallagnol coloca Lava Jato em risco quando escolhe arrebatar seguidores

Artigo critica postura do procurador em suas palestras e denúncia a Lula

Nesta quarta-feira (28). o jornal espanhol El País traz um longo texto assinado por Eliane Brum sobre os métodos de combate à corrupção do procurador Deltan Dallagnol. O jornal destaca que, ao apresentar a denúncia contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ele apanhou de (quase) todos os lados, algo bastante raro nestes tempos. "Tão raro que merece certo espanto e precaução. Em diferentes partes do seu discurso durante a coletiva de imprensa de 14 de setembro, ele chamou Lula de “comandante máximo” do que definiu como “propinocracia”, de “o grande general” do esquema de corrupção e de “maestro da orquestra criminosa”. Disparou metáforas e abusou dos adjetivos. Mas quando efetivamente fez a denúncia, a força-tarefa da Lava Jato, em Curitiba, acusou Lula pelos crimes de corrupção e de lavagem de dinheiro. O que não é pouco, mas é bem diferente de ser o chefe de uma organização criminosa. O episódio é pródigo de sentidos sobre o Brasil atual. Um deles é a corrosão da linguagem. O outro é a demanda por crença. Estas duas dimensões se articulam na gênese do atual momento do país", diz o texto.
El País afirma que o procurador Deltan Dallagnol não parecia estar num tribunal de júri, como chegou a ser sugerido em algumas críticas sobre sua atuação, mas em outra arena, a das redes sociais. "Ele não parecia preocupado em informar cidadãos, mas em buscar seguidores. Como um candidato a herói nesta época, seu troféu são cliques no botão de “curtir”. O representante do Ministério Público Federal acusou sem exibir provas, apresentou como verdade o que não era capaz de provar como verdade. Ao descolar-se da realidade, esvaziou as palavras, o que deveria ser denúncia virou grito. Como no cotidiano das redes sociais, repete-se e repete-se algo para que, pela viralização, ganhe status de verdade", prossegue o artigo.
> > El País Denuncia de Facebook
O texto lembra que logo de imediato veio a reação. O gráfico do powerpoint em que Dallagnol tentava mostrar como tudo convergia para Lula virou meme. E o que viralizou foi uma frase atribuída ao procurador: “Não temos provas, mas temos convicção”. "Esta é a parte mais interessante dessa produção de conteúdo viral. A frase não foi dita. Ela era também uma criação. Ainda que seja possível interpretar o conjunto da apresentação do procurador desta maneira, há enorme diferença entre uma afirmação literal, entre aspas, e a interpretação ou conclusão a que um outro possa chegar a partir do que foi dito. Se essa distinção não é estabelecida, perde-se o sujeito e perde-se o discurso", diz El País.
El País afirma que é na convicção de seus seguidores – e não nas provas – que Dallagnol parece apostar
El País afirma que é na convicção de seus seguidores – e não nas provas – que Dallagnol parece apostar
Há um grande risco quando a verdade se torna uma questão de crença
O jornal espanhol diz que naquele momento, a disputa acontecia com uma guerra de verdades fabricadas. Nas redes, a viralização ou a multiplicação dos compartilhamentos é a melhor estratégia para conferir veracidade a algo ou mesmo transformar versão em fato. Ou ainda, é uma forma de criar realidade. A experiência cognitiva é substituída pelo botão de “curtir”. Em vez da reflexão, o espasmo. De um lado e de outro, o que aparece como mais importante é a convicção, não as provas. E uma convicção formada a partir da quantidade de cliques. "Esse desejo feroz de crença tem corroído o país de forma insidiosa. E só persiste porque os fatos, para um e outro lado, são inconvenientes. O problema é que mesmo a história recente já mostrou que tentar contornar os fatos, por mais duros que sejam, resulta em fatos ainda piores", diz o texto.
El País observa que no caso específico da denúncia de Lula, tanto a ação quanto a reação buscavam adesão pela crença. Os fatos importavam pouco. "É necessário, porém, fazer uma distinção de responsabilidades. Deltan Dallagnol falava como procurador da República. Servidor público no exercício de suas funções constitucionais. Quando ele acusa sem apresentar provas, a gravidade é de outra ordem. Pela posição que ocupa, sua palavra tem mais potencial para ser decodificada como verdade. Ao falar como procurador, ele não representa a si mesmo, mas a instituição", diz o texto.
O artigo argumenta que essa dinâmica assumida pela figura que representa a força-tarefa da Operação Lava Jato em Curitiba chama atenção para a “justiça” que ganha rosto, e que ganha rosto na era da internet. "Numa analogia com as redes, ao fazer acusações gravíssimas sem lastro nas provas, Dallagnol faz um “discurso de ódio”. Neste sentido, o procurador não é muito diferente de um dos “haters” (odiadores) da internet, ao chamar Lula de “maestro da orquestra criminosa” sem mostrar o que sustenta essa acusação", prossegue El País.
“Tenha a coragem para saber ser liderado”, diz o procurador em palestras
"Torna-se preciso então olhar para o indivíduo Deltan Dallagnol, este que personifica o que não deveria ser personificado. Ao ministrar palestras sobre as 10 medidas anticorrupção o procurador diz à plateia: “Tenha a coragem para saber ser liderado. Para se levantar e, quando você vê uma causa boa, se juntar ao maluco solitário que está dançando”. E, alguns minutos mais tarde: “Lute pelas causas que você ama como você lutaria por um filho com câncer. Eu duvido que você desistisse de um filho doente com câncer por mais que inúmeros médicos buscassem tirar suas esperanças. Você continuaria lutando, você dobraria os joelhos, você buscaria o impossível, porque você ama aquele filho. Assim como você lutaria por esse filho, meu desafio hoje para você é que você lute pelo teu país”."
O artigo destaca que em sua pregação anticorrupção, "Dallagnol invoca do púlpito a oportunidade de mudar o país. Ele pede para “curtirem” sua página pública, “em nome de Deltan Dallagnol”, no Facebook. E encerra com uma pergunta: “Nós podemos contar com você?”. Pede então que aqueles que apoiam “as 10 medidas” levantem as mãos. Registra a imagem em seu celular. “Um dois três... sensacional”", diz o texto.
É na convicção de seus seguidores – e não nas provas – que Dallagnol parece apostar
El País descreve Dallagnol como um homem que se investe de uma missão e se apresenta no Twitter como “seguidor de Jesus”. As aparições públicas do procurador demonstram que ele pede adesão pela fé no líder que, pela adesão , torna-se líder. "Como se viu na apresentação da denúncia contra Lula, em 14 de setembro, ele também parece seguir à risca o ensinamento do guru Derek Sivers de não temer o ridículo", diz o texto.
El País prossegue: "É neste ponto que vale observar os últimos dias com atenção redobrada. A cobertura da denúncia foi um daqueles momentos em que uma parcela da imprensa fez o seu papel, ao lançar luz sobre pelo menos dois pontos importantes do espetáculo estrelado por Deltan Dallagnol: 1) a diferença entre a acusação verbal, a de chefe de uma organização criminosa, e a denúncia formal, a de corrupção e lavagem de dinheiro; 2) a escassez de provas para sustentar a denúncia. Uma parte da imprensa também fez seu papel ao mostrar que a frase atribuída ao procurador – “Não temos provas, mas temos convicção” – não foi dita por ele."
Qual é o impacto da acusação sem provas em um país que produz tantos linchamentos?
É bastante difundida a hipótese de que a fragilidade da denúncia deva ser comemorada pela defesa de Lula analisa El País. "No julgamento, sim. Mas e na justiça? Onde se ganha a fé das pessoas, a fé que vira voto, já que é também crença – e não razão – que hoje se pede aos eleitores? O impeachment de Dilma Rousseff, claramente sem base legal, mostra bem o que é determinante no resultado da disputa."
El País destaca que o espetáculo comandado pelo maestro Deltan Dallagnol levanta questões importantes. Qual é o impacto dessa atuação – acusar sem apresentar as provas – num país no qual ainda há tanta dificuldade de acesso à Justiça para vastas parcelas da população? Qual é o impacto deste exemplo, por parte de um servidor público com tanta expressão, no imaginário de uma sociedade que produz tantos linchamentos?
El País analisa que o xadrez em torno da Lava Jato é complexo. "É preciso entender se, neste jogo, Deltan Dallagnol é bispo ou apenas um peão que acredita ser bispo. O que se pode afirmar é que, para a maioria dos brasileiros, é crucial que a Lava Jato continue avançando e de fato passe a limpo a relação entre poder público e empreiteiras, para muito além dos governos de Lula e de Dilma Rousseff. Essa relação é mais antiga do que a construção literal de Brasília. E define muito do país. Para isso, é preciso que policiais, procuradores e juízes sejam policiais, procuradores e juízes – e não justiceiros nem heróis de Facebook."
Assim, antes de “curtir”, é importante resgatar a experiência do pensamento, esta que nos diferenciou dos outros grandes primatas. Espantar-se, duvidar, questionar, checar e, principalmente, diferenciar o que é fato do que é versão antes de sair clicando e gritando. E tudo isso sem medo de enfrentar as contradições, resistindo mesmo que doa à tentação de contornar as verdades mais duras. Há muitos líderes ou aspirantes a líder dançando freneticamente na montanha para atrair seguidores.
Para finalizar, o texto de El País deixa a seguinte reflexão: "Não siga. Pense."

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