Na hora do adeus, coragem de Dilma engrandece sua biografia
Mário Magalhães
Quase
no fim do interrogatório de 13 horas e 54 minutos, pertinho da
meia-noite de 29 de agosto de 2016, Zezé Perrella disparou perguntas
duras a Dilma Rousseff.
A presidente constitucional poderia ter
indagado se o senador tem viajado de helicóptero, mas se limitou a
responder com objetividade ao interrogador.
Pouco antes, tinha sido a vez de Flexa Ribeiro.
A interrogada não mencionou a cana que ele amargara por ocasião da Operação Pororoca. Tratou dos assuntos que o tucano abordara.
Diante
de velhos companheiros de refregas contra a ditadura, agora
transformados em algozes, poderia ter cantarolado “quem te viu, quem te
vê…''.
E piscado para Chico Buarque, o compositor daqueles versos, que assistia no Senado à cerimônia do adeus.
Em
vez da atitude catártica, que talvez fizesse bem para espanar um pouco
da poeira da hipocrisia que assola o país, Dilma se conteve.
Nem
por isso deixou de lutar. Peleou até o fim, na sessão em que começou a
falar às 9h53, em seu discurso de 45 minutos, e pronunciou a última
palavra às 23h47.
Consciente do cadafalso que a aguardava em
algumas horas, na noite de hoje ou na madrugada de amanhã, a presidente
poderia ter denunciado de longe o golpe de Estado e as cartas marcadas,
sem comparecer à arena em que provavelmente a devorarão.
Preferiu encarar seus carrascos.
Tá pensando que é moleza?
Michel
Temer, o missivista ressentido que conspirou com gente mais suja que
pau de galinheiro para depor uma cidadã honesta, acovardou-se até de
vaia no Maracanã. Fez forfait na cerimônia de encerramento da Olimpíada.
O
senador Romero Jucá, desenvolto em armações pelo impeachment e pela
impunidade, não interpelou Dilma. É ele o autor da frase-síntese “tem
que mudar o governo pra poder estancar essa sangria''.
Em vez da
pusilanimidade alheia, Dilma ofereceu coragem, aquela que a vida quer da
gente, conforme o Guimarães Rosa apreciado por ela.
Seus
melhores momentos foram ao defender a soberania do voto popular e a
própria inocência. O impeachment está previsto em lei. Mas sem crime de
responsabilidade do governante constitui golpe de Estado.
Os
argumentos pró-deposição foram sendo respondidos com tamanha clareza que
os opositores passaram a versar sobre temas estranhos ao processo _e
olha que clareza não é o forte da presidente na iminência de ser
deposta. Queriam debate eleitoral. A advogada Janaina Paschoal não
elaborou uma só pergunta sobre o que poderia ser crime de
responsabilidade. Preocupou-se com crescimento econômico de países
latino-americanos.
Os pior de Dilma foi seu silêncio sobre o que
não se pode silenciar. Mostrou combatividade ao proclamar a Petrobras e o
pré-sal patrimônios nacionais. Calou, contudo, sobre a roubalheira na
companhia. É certo que a gatunagem já existia nos anos Fernando Henrique
Cardoso. Mas no mínimo se manteve e possivelmente se expandiu na era
petista. A rejeição à liquidação do pré-sal e o combate escrupuloso à
corrupção não são contraditórios. Combinam-se. Uma ação exige a outra.
A
presidente não explicou, quem sabe o porvir explique, por que
sacrificou os mais pobres no arrocho dito ajuste que se seguiu à eleição
de 2014. Os gráficos que exibiu sobre a degringolada do cenário
econômico internacional impressionam. Mas a decisão de cobrar a conta
daqueles que a elegeram permanece como mistério.
Nada disso
configura crime de responsabilidade. Subsídio não é crédito, como outro
dia ensinou o professor Luiz Gonzaga Belluzzo no plenário do Senado.
Pedaladas fiscais são pretextos para expulsar quem colheu 54.501.118
votos.
Se governo desastroso, como o segundo mandato de Dilma,
justificasse afastamento, os governadores Pezão-Dornelles deveriam ter
recebido cartão vermelho muito antes.
Na democracia, presidente se elege na urna, e não no tapetão.
A presidente defendeu-se no processo e depôs para a história.
A sessão de ontem, e não apenas o seu discurso, equivale a uma carta testamento.
Querer
a mesma dramaticidade da carta de Getulio Vargas em 1954 é
desconsiderar que um era cadáver, saíra da vida e entrara na história.
Dilma tem muita vida pela frente, embora também já seja história.
É
preciso ser muito insensível ou cultivar o ódio para não perceber o
contraste entre uma mulher batalhando com altivez, concorde-se ou não
com ela, e o novo governo que expurgou as mulheres do Ministério.
Entre a mulher que deu a cara para bater no Senado hostil e o sucessor sem voto que se esconde em meio às brumas da intriga.
Entre
a mulher que dá nome aos bois, a começar por Eduardo Cunha, o patrono
do impeachment, e quem trama para proteger o deputado correntista.
Beira
a desonestidade intelectual fazer o balanço de ontem com base
exclusivamente em votos mudados. O jogo já estava jogado. Nem por isso a
presidente se acovardou.
Se a vida quer é coragem, a vida não pode reclamar de Dilma Rousseff.
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