A Lei é a razão, livre da paixão.
Mauro Santayanna
Essa sábia constatação de Aristóteles, cada vez mais atual, já velha de
mais de 1.300 anos, está aí para nos lembrar que, fora da Lei, só
existe a lógica do tacape, da destruição e do sangue, derramado por
aqueles que preferem pensar com o porrete, abrindo a cabeça dos outros,
do que abrir - figurativamente - a própria cabeça para tentar
compreender e melhorar o mundo.
O STF, por meio do ministro Celso
de Mello, deu, esta semana, mais um corajoso passo rumo ao
restabelecimento de um pleno Estado de Direito no Brasil, que se junta
ao recente habeas corpus concedido ao ex-ministro Paulo Bernardo, por
insuficiência de indícios que justificassem sua prisão, pelo Ministro
Dias Toffoli, na semana passada.
Em um país em que - apesar de
afirmar-se que a prisão não é a regra - aproximadamente 60% dos presos
estão atrás das grades sem nunca terem ido a julgamento - tomado pela
falácia fascista de que é preciso endurecer as leis contra suspeitos,
aqui automaticamente convertidos em "criminosos" e "bandidos" pela
parcela mais medieval da opinião pública que faz questão de desconhecer
olimpicamente que ninguém deveria ser tratado nesses termos antes de
julgado e definitivamente condenado - Celso de Mello ousou permitir que
um réu recorresse em liberdade, como prevê a Constituição, mesmo depois
de ter sido condenado em segunda instância.
Tal atitude bastou
para que fosse transformado na bola da vez (o próximo é o ministro
Ricardo Lewandowski) da malta fascista que ataca raivosamente todos
aqueles que não fazem exatamente o que ela espera.
Não porque ela
decida alguma coisa, mas porque seus donos assim o querem, já que é
desavergonhadamente manipulada, embora - tendo a ilusão de que foi ela
que construiu, com sua ignorância, hipocrisia e cabotinismo o discurso
único e o senso comum que hoje imperam - não se aperceba de que não
passa de massa de manobra de grupos que se assenhorearam de certos
nichos do Estado - como se de seu próprio feudo se tratasse - e que
parecem pretender, paulatinamente, ir tomando o controle da República.
O que estamos vivendo neste país, hoje, é a contestação cotidiana da
autoridade do STF, com uma sucessão de atos de exceção que a
contradizem.
Por um lado, "aperta-se" a Suprema Corte, que, por
vezes, cede diante da pressão avassaladora do fascismo nas redes sociais
- ou, embora não possam reconhecê-lo, às ameaças voltadas diretamente
aos próprios ministros e a suas famílias - muitas vezes escudada pela
parcela mais parcial, mendaz e imediatista da mídia.
Por outro,
tomam-se medidas à sua revelia, como conduções coercitivas, escutas e
vazamentos não autorizados, a imposição, praticamente forçada, por
circunstâncias óbvias, do instituto da delação premiada a cidadãos sob a
custódia do Estado, e, principalmente, prisões moralmente ilegais e
abusivas - quando não há ilações que, mesmo remotamente, as justifiquem,
acusa-se o "malfeitor" de obstrução de justiça - que se repetem a cada
novo dia, como ocorreu no caso do próprio Paulo Bernardo, e, agora, do
Almirante Othon Pinheiro da Silva, como que testando, espicaçando, a
determinação e os limites do Supremo Tribunal Federal no cumprimento de
sua missão de salvaguardar a Lei, a Constituição e o Estado de Direito.
Ao conceder o pedido da defesa do cidadão condenado em Minas Gerais, o
ministro Celso de Mello não fez mais do que obedecer ao princípio de
justiça universalmente aceito de que in dubio pro reo - nenhum indivíduo
pode ser encarcerado se houver, ainda, qualquer dúvida, a propósito de
sua culpa ou responsabilidade.
A aprovação, pelo STF, por
diferença de apenas dois votos, da possibilidade do cumprimento da
prisão em regime fechado depois da condenação em segunda instância, na
análise de um caso específico, em fevereiro, não pode ser vista como
pétrea nem definitiva, já que não foi aprovada ou regulada pelo
Congresso Nacional, apesar de afetar diretamente os efeitos do que está
disposto no artigo 5 da Constituição Federal, tratando-se, portanto, de
matéria constitucional.
Mais grave do que isso, no entanto, foi a
reação de parte da opinião pública e de juízes e procuradores que
contestaram, agressivamente, sua decisão, pretendo atribuir-lhe a
possibilidade de interferir com o andamento da Operação Lava Jato.
Ora, nem a Operação Lava Jato está acima do STF, ou da Lei, ou da
Constituição da República. ou da opinião, livre, desimpedida, de
qualquer cidadão; nem a Suprema Corte pode julgar, conforme as
circunstâncias do momento.
Ela deve fazê-lo com vistas ao
espírito da letra constitucional, que está muito acima, mutatis
mutantis, do que qualquer operação jurídico-policial ou das declarações
deste ou daquele grupo ou corporação ou das manchetes dos jornais e dos
noticiários de televisão.
O discurso do combate à corrupção seria
uma moda passageira e discutível, eventual e potencialmente útil ao
aperfeiçoamento das instituições, se não estivesse sendo utilizado, no
Brasil - como aliás costuma ocorrer quase sempre na História - como
instrumento político de mobilização de massa, de mudança de governo e de
conquista do poder.
O STF não pode permitir que em nome dessas manobras e do combate à corrupção, se solape a democracia.
Que, com a justificativa de uma utopia proposital e interesseiramente
manipulada - a venda à população da ilusão de que a corrupção pode ser
eliminada pela mera repressão de quem a pratica - se estupre o Direito e
se corrompa um patrimônio muito maior do que pessoas, partidos ou
empresas: o da Liberdade e o da Constituição da República.
Não se pode negar a responsabilidade do governo anterior pelo atual estado dos fatos.
Pressionado por manifestações já infiltradas por adversários,
principalmente depois de 2013, ele errou, e muito, ao diminuir, em nome
de um republicanismo caolho, a autoridade que o poder político -
derivado da vontade expressa nas urnas pela maioria dos brasileiros -
deve ter sobre o Estado e principalmente sobre corporações que, pela
própria natureza de suas atividades, exercem poder direto sobre os
cidadãos, estimulando certa tendência autonômica, por extensão,
autoritária - hoje já quase doutrina - que não se justifica nem se
legitima, já que não deriva, justamente, do voto popular.
Cabe
agora ao Congresso, por meio de ampla aliança - política, por que de
política se trata - que deve incluir todos os partidos, fazer valer suas
prerrogativas constitucionais e proceder à correção, com urgência, das
brechas institucionais que favorecem o arbítrio e os excessos que se
avolumam cada vez mais, como se fossem regra, e não uma situação
excepcional e anômala, que se aproxima, na prática e cada vez mais, de
um verdadeiro Estado de Sítio.
O STF não pode ceder à pressão e à
chantagem a que querem submetê-lo, a todo momento, nesta grave quadra
da vida nacional, nem ao achincalhamento de suas decisões por alguns
juízes e procuradores cujo ego é inversamente proporcional à sua escassa
idade, bom senso e experiência, ou - talvez porque não se ensine nos
cursinhos que preparam para os concursos - ao seu entendimento do que
são a Democracia e o regime presidencialista, repentinamente alçados a
uma súbita e artificial notoriedade, por uma mídia comprometida e
irresponsável, que não sabe que está amarrando a sua égua justamente
onde a onça bebe água.
A Suprema Corte deve, assim como a própria
Constituição - a não ser que a Lei seja mudada pela sagrada vontade do
povo - ser eterna diante das circunstâncias.
A história passa. O STF vigia.
Ele deve permanecer, em benefício de sua reputação histórica, e da
biografia de seus membros, imóvel como um rochedo na paisagem
institucional da República, e imune. até onde for possível, às
circunstâncias temporais, humanas e políticas.
Como uma bandeira
cujo mastro, mesmo que se dobre momentânea e eventualmente à tempestade,
sempre volta a se erguer, soberano e sereno, em todo seu poder,
evidência e plenitude.
Tudo isso exige, sobretudo, firmeza,
equilíbrio e coragem, por parte de uma instituição que está aí não para
mudar o país, mas para evitar que as mudanças que eventualmente
aconteçam - que não podem ser impostas, como está ocorrendo, na base da
pressão, da intolerância e da chantagem - ofendam ou extrapolem o que
está escrito na Carta Magna, colocando em risco os direitos dos
cidadãos, principalmente aqueles que envolvem, como ocorre agora, a
Incolumidade, a Opinião e a Liberdade.
Mauro Santayana é jornalista e meu amigo.
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