Opinião

Crime e castigo

Hanna Schmitz, a protagonista de "O leitor", o romance mais famoso de Bernhard Schlink, foi condenada por um tribunal alemão a uma pena de 20 anos. Não matou ninguém nem foi acusada de maus-tratos. Alistara-se nas SS, já no outono de 1943, e foi guarda em Auschwitz, onde selecionava e acompanhava as prisioneiras destinadas por outros às câmaras de gás. Muito depois do fim da guerra e dos processos de Nuremberga contra alguns dos mais famosos torcionários nazis, a publicação do livro de uma sobrevivente dos campos de extermínio iria suscitar a abertura do processo-crime em que Hanna foi acusada.
A desmesurada pena a que a condenaram, resultou, segundo o narrador da ficção - seu antigo amante - da desorientação estratégica do defensor oficioso, dos preconceitos do julgador, do oportunismo das restantes acusadas mas, sobretudo, foi consequência da sua própria ingenuidade, de uma perceção imprecisa da sua própria culpa que, honestamente, se esforçava por compreender. Quando o juiz lhe perguntou porque não abriu a porta do edifício bombardeado pela aviação aliada, de forma a permitir às prisioneiras fugir das chamas que as vitimaram, Hanna não esclarece que o edifício tinha várias portas e não apenas uma, que as chaves se encontravam nas fechaduras, pelo lado de fora, e que, por isso, qualquer outra guarda, ou soldado ou mero cidadão da aldeia vizinha, as poderia ter aberto... Não. Em vez disso, retorquiu que o seu papel era guardar as prisioneiras e não solta-las, e interpelou o juiz, num gesto inesperado e provocatório: - "...e o que faria no meu lugar?".
A condenação ficcional de Hanna Schmitz vale como expiação simbólica da "culpa alemã" pelo horror do nazismo e o holocausto. A sua perplexidade, tão genuína quanto desastrosa, ilumina a enorme distância que medeia entre a responsabilidade individual e a culpa coletiva, entre o significado prático e instrumental de uma condenação judicial e os tortuosos meandros da consciência, da ética, da subjetividade. Contudo, nenhuma sociedade conseguiria sobreviver à sistemática deceção das expectativas dos seus membros e aceitar a impunidade como um fenómeno habitual ou habituar-se a conviver com tão desmesurada incerteza. A função das leis e a missão do poder judicial inscrevem-se, justamente, aqui. Os tribunais existem para resolver os conflitos que, de outra forma, ficariam para sempre sem solução. Porém, os tribunais não resolvem, de facto, nenhum problema real. Limitam-se a pôr termo a controvérsias que eles próprios confecionam segundo fórmulas e procedimentos legalmente estabelecidos, num tempo medido ao ritmo dos "prazos judiciais", com o fito de alcançar uma solução que reconduza o caminho longo e incerto da procura da verdade, à modalidade mais prática e expedita da prescrição, da "prova dos factos" e do "trânsito em julgado".
A solidariedade tribal cultivada pelas praxes académicas, na praia do Meco ou em Famalicão, ignora estas verdades elementares. Paradoxalmente, as praxes resistem, inexpugnáveis, nos lugares mais improváveis, desfrutando da indulgência interesseira de autoridades universitárias, da ignorância dos pais, da leviandade de alguns nostálgicos das folias juvenis. São verdadeiras escolas de crime e providenciam uma preciosa iniciação às práticas endémicas do suborno, da subserviência e da corrupção. Os 19 elementos da tuna estudantil do polo de Famalicão da Universidade Lusíada trocaram o esclarecimento dos factos e o apuramento de responsabilidades individuais no assassínio ritual do seu colega Diogo Macedo, por uma absolvição judicial. Mas pelo "pacto de silêncio" que firmaram, assumiram também, e para sempre, a responsabilidade comum pela impunidade do crime hediondo que testemunharam. Quem se achar capaz de censurar o desabafo incauto da mãe de Diogo Macedo pelo seu filho injustiçado, que atire a primeira pedra.

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