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Quem tem medo de falar sobre as drogas?

Os mesmos parlamentares que votam contra a restrição da propaganda do álcool na TV, votam contra as legalizações das outras drogas.


Léa Maria Aarão Reis
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Especialista em Inteligência Criminal da Scotland Yard, John Grieve, em entrevista dada há meses ao jornal Le Monde Diplomatique, defendeu a legalização geral das drogas. Seu argumento é de conhecimento até das pedras: o combate ao tráfico se mostra um fracasso e os estados ganhariam fortunas com impostos ao invés de arcar com os gastos monumentais, de altíssimo custo financeiro e humano, para combatê-lo inutilmente. Esta segunda maior movimentação de dinheiro do mundo; cerca de 750 bilhões de dólares (alguns calculam que chega perto de um trilhão), atrás apenas do comércio de armas e das transações relacionadas ao petróleo, deixam uma pergunta nunca claramente respondida e uma conclusão óbvia: quem está lucrando fortunas com o tráfico de drogas? Estes não vão querer perder a mamata.

Se mundo afora cresce o debate sobre a descriminalização e regulamentação da venda de drogas, no Brasil a discussão que trata da legalização do porte da maconha para consumo próprio, ganha novos contornos e uma repercussão inédita com o julgamento que atualmente corre no Supremo Tribunal Federal (STF), paralisado depois do pedido de vistas do ministro Luiz Fachin.  Ele e seus pares devem analisar a constitucionalidade do artigo 28 da lei 11.343, de 2006, que diz serem crimes os atos de adquirir, guardar ou portar drogas para consumo próprio.

De um lado, perguntam especialistas no assunto: será que o Brasil está ‘pronto’ para a nova postura legal?  “Não se trata de  ‘estar pronto’. O que é necessário para se estar pronto e maduro? ” indaga o cartunista Laerte, defensor da campanha em curso, pela legalização. “A população brasileira está sendo massacrada por uma política de combate às drogas que penaliza parte dela.  O país já está mais do que pronto. A guerra contra as drogas acirra tensões sociais. Não é para ser vencida; ela é um fim em si mesmo.”

Durante a primeira sessão plenária do STF, várias entidades se manifestaram contra e a favor. Uma ressalva importante foi destacada: a descriminalização não significa a liberação total do uso de drogas, como argumentam os defensores da proibição. O defensor público de São Paulo Rafael Munerati diz que o Brasil precisa buscar alternativas para combater as drogas fora do poder repressivo do Estado.

O delegado de polícia Orlando Zaccone, da Leap (Law Enforcement Against Prohibition), organização internacional a favor da legalização das drogas, por sua vez defende a produção, comércio e consumo de todas as drogas. “O que não significa que elas vão entrar no mercado de qualquer maneira; as drogas lícitas, por exemplo, são controladas.” Ele lembra que o álcool não chega ao mercado de qualquer forma. O absinto, por exemplo, é proibido. As drogas hoje proibidas, segundo ele, serão regulamentadas para chegar ao mercado de uma forma que o estado autorize; as que não estiverem no padrão serão naturalmente afastadas pelo próprio mercado.

Gilberta Acselrad, mestra em Educação e professora convidada do Curso Educação e Políticas Contemporâneas sobre Drogas no Brasil, da Faculdade de Educação da UERJ, em entrevista ao site Estado de São Paulo, pergunta: “O projeto será discutido quando? mais uma vez adiado? A meu ver é um projeto de classe. (O porte) já está descriminalizado para quem mora na zona sul do Rio de Janeiro, por exemplo, e é branco; e continuará sendo criminalizado para quem não é branco e mora na periferia. Serve como motivo para controle social e limpeza étnica.”

Para divulgar com coragem e sem hipocrisia o polêmico assunto, a professora Acserald reuniu o grupo de pesquisadores ao qual pertence - a psicóloga Flavia Pfeil; a juíza aposentada Maria Lucia Karam, da diretoria da Law Enforcement Against Prohibition (Leap); Rita Cavalcante, professora da Escola de Serviço Social da UFRJ e o psiquiatra e médico da Fiocruz, Sergio Alarcon – e lançou, no primeiro semestre deste ano, um livro de referência, uma produção coletiva, de leitura fundamental para pais e para os que atuam na área da educação e precisam discutir com os jovens, honesta e sem preconceitos, a questão das drogas.

Quem tem medo de falar sobre drogas? Saber mais para se proteger, da Editora FGV, vem com 156 questões de alunos do ensino fundamental e médio de escolas públicas e particulares do Rio, entre 14 e 17 anos, respondidas pelos pesquisadores. Convidada com frequência para discutir o tema nas escolas, Gilberta decidiu acolher as perguntas dos adolescentes no lugar das tradicionais palestras. “Eles são os que mais sofrem com a política de drogas atual. As suas perguntas revelam o compromisso dos adolescentes com uma questão de interesse público e evidencia o pouco avanço das políticas públicas no Brasil.” E acrescenta: “Nossa intenção é contribuir para a formação de adolescentes esclarecidos e fortalecidos em seu projeto de futuro. Assim, eles estarão mais bem preparados para tomar as decisões que afetam suas vidas.”

“A maioria das pessoas evita falar sobre drogas. Mas os jovens não têm medo dessa conversa,” ela sublinha.

O livro é realmente único. “Ouvir os meninos e meninas é urgente porque tem menino morrendo diariamente. Nele, um capítulo do volume é dedicado aos profissionais que lidam com dependentes, personagens também esquecidos; outro apresenta o ponto de vista dos usuários - pessoas que só costumam ter voz entre as quatro paredes de um consultório médico ou na polícia.”  No fim, uma lista de endereços de instituições de saúde em drogas espalhadas pelas principais cidades do Brasil.

Certamente, os brasileiros não têm, com relação ao álcool, o mesmo preconceito. “Se conseguirmos virar a página de extrema violência criada pelo proibicionismo, abolindo a pena de prisão para a produção, comércio e uso de todas as drogas, estaremos  escolhendo estender o que já foi feito em relação ao álcool, ao tabaco e a todos os medicamentos psicoativos – legalização, controle e fiscalização. A legalização e a consequente regulamentação de todas as drogas é o melhor caminho,”  afirma Acselrad.

As notícias sobre drogas, antes restritas às páginas policiais e de saúde, hoje com amplos espaços na mídia, fortalecem programas sociais que já vinham sendo realizados para redução de danos, discutindo a legalização. “Eles associam tratamento e inclusão social e têm chances de reverter os usos problemáticos de drogas sejam elas quais forem. Mas com os R$ 15 por dia pagos pela prefeitura de São Paulo, por exemplo, aos usuários dependentes, a inclusão pretendida, se permanecer nesse patamar, será precária. Tais programas funcionam, mas precisam assegurar saídas variadas de formação profissional, fortalecendo alguma formação prévia que o usuário já tenha e possibilitando uma real inclusão social. Os que atacam este programa expressam o preconceito criado pelo proibicionismo.”

Para quem nutre a fantasia de que as drogas são legalizadas na Holanda, é bom lembrar que esta realidade, lá, é bem mais complexa. O país nunca legalizou a maconha. O sistema holandês foi criado para separá-la do consumo de outras drogas no mercado. As coffee shops licenciadas para tal só podem vender pequenas quantidades da erva para consumo pessoal para maiores de 18 anos. Cultivo, tráfico, porte e venda de drogas permanecem ilegais. Os cafés licenciados podem vender, no máximo, cinco gramas de maconha para cada pessoa e não podem ter mais de 500 gramas em estoque. Importar e exportar quaisquer drogas, na Holanda, é crime grave: para substâncias mais fortes, a pena varia entre 12 e 16 anos de prisão e para grande quantidade de maconha, chega a quatro anos.

Quando o ex-presidente do Uruguai, José Pepe Mujica esteve no Rio de Janeiro, esta semana, e falou para cinco mil jovens na UERJ, contribuiu para dar mais peso e transparência à polêmica da legalização e regulação das drogas. Como de hábito, Mujica foi breve e incisivo: “Se queremos mudar algo, não podemos ficar fazendo mais do mesmo. No meu país, tomamos uma decisão. Como não podemos vencer o narcotráfico, pois de cada três presos um deles está relacionado às drogas, ou por tráfico ou por delito que cometeu para conseguir dinheiro para comprá-la, decidimos arrebatar o mercado (NR: das mãos dos traficantes). Isto não é legalização. Isto se chama regulação."

A hipocrisia que quase sempre envenena o debate é evidente não apenas no livro Quem tem medo de falar sobre drogas onde um dos alertas é este: “Não saber nada sobre drogas é muito arriscado.” O delegado Zaccone coloca mais lenha na fogueira da má consciência, dos interesses escusos e da ignorância quando lembra:

“Quando você tem um projeto de lei, no Congresso, para restringir o horário da publicidade de bebidas alcoólicas apenas a partir das dez horas da noite, ele não passa porque a Ambev é a maior financiadora dos partidos políticos. E os mesmos parlamentares que votam contra a restrição da propaganda do álcool na TV, votam contra as legalizações das outras drogas. Se isso não é hipocrisia, não sei então o que é.”

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