Opinião

Carlos Brickmann
‘CHARLIE HEBDO’: Cuidar da própria vida
Gente radicalizada, vá lá: há jornalistas envenenados pela própria propaganda festejando a demissão de colegas e o fechamento de fontes de emprego, há fundamentalistas para quem o que foi escrito há milhares de anos (e traduzido sabe-se lá como, sabe-se quantas vezes) deve ser interpretado ao pé da letra, mesmo à custa da própria vida ou da vida de outros. E, como não disse o empresário americano P. T. Barnum, ninguém jamais perdeu dinheiro por superestimar o número de malucos no mundo.
Mas bons jornalistas, professores universitários, gente inteligente e preparada não deveriam fazer-se de desentendidos diante do assassínio, por terroristas islâmicos fundamentalistas, de grande parte da equipe do Charlie Hebdo. Não se pode, em sã consciência, dizer que o Charlie Hebdo abusou da liberdade de imprensa e que, portanto, estava mesmo sujeito à barbárie, tendo até contribuído para atraí-la. Isso é tornar-se cúmplice do crime.
O problema é outro: o humor do Charlie era efetivamente agressivo, frequentemente de mau gosto, desconhecia limites – tudo, porém, na forma da lei. Ofendia muçulmanos ao desenhar Maomé, o que e proibido pelo islamismo? Ofendia judeus ao desenhar o Senhor, que pelo judaísmo não deve ter sua figura representada? Ofendia católicos, ao sugerir que a Virgem Maria inventou a história da gravidez imaculada para que seu marido José não se sentisse tentado a repudiá-la?
Sim, ofendia (e, esperemos, continuará a fazê-lo, ignorando as ameaças dos malucos assassinos); e quem se sentisse ofendido teria dois caminhos a seguir, o primeiro deles entrar na Justiça e verificar se teria havido violação da lei, o segundo ignorar a existência da revista e continuar vivendo sem que ela lhe fizesse falta.
Mas exigir que fiéis de outras religiões e ateus se comportem como muçulmanos ortodoxos é inaceitável (e, a propósito, comportar-se como muçulmano ortodoxo, para começar, significa ser xiita, alauíta ou sunita?). Este colunista, judeu, ficou chocado quando um bispo evangélico chutou a imagem da Virgem Maria; imagina que católicos mais fervorosos tenham se sentido muito mal com isso. Mas seria inimaginável a reação de sair por aí matando quem não se importasse com a sacralidade da imagem.
A questão, enfim, não é saber se o Charlie Hebdo era ofensivo ou não, de mau gosto ou não, excessivo ou não. Ninguém jamais foi obrigado a comprar ou a ler a revista; ninguém jamais foi proibido de processá-la, ou a seus colaboradores, por ofensa a uma religião ou convicção. A questão é saber se uma religião, uma posição política, uma atitude qualquer, deva preponderar sobre as demais religiões, posições políticas ou atitudes.
Não deve; não pode. Esta é a diferença entre os fundamentalistas ocidentais, aliás chatíssimos, e os fundamentalistas muçulmanos. No Ocidente, cada um tem o direito de seguir suas convicções desde que não obrigue os outros a segui-las. Se o cavalheiro é pagão, problema dele. Se a dama é wicca e acredita em mágicas, problema dela. Se alguém decidir adorar a imagem de um carneiro assado com ameixas, problema dele – desde que não passe a perseguir quem quer que aprecie um bom carneiro assado, com ou sem molho.
Je suis Charlie. Ser Charlie não significa concordar com as ideias da revista, não significa concordar com o que é divulgado pela revista. Significa, única e exclusivamente, lutar pelo direito da revista e de seus colaboradores de expor seus pontos de vista, sejam quais forem, conforme previsto em lei.
O Senhor nos deu uma vida para que cuidemos dela. Que cada um tenha o direito inalienável de cuidar da sua, sem que ninguém se meta nela.

Nenhum comentário:

Postar um comentário