Artigo do Jurista e Professor Luiz Flávio Gomes | Contato para Entrevista, Opinião Jurídica e Palestras
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Artigo 11 de Novembro 2014
Promotor compra drogas e pede para entregar no fórum
Cena 1: Numa
espécie de recordação da primeira transação eletrônica da história
(feita no começo dos anos 70, por estudantes de Stanford e do MIT-EUA,
envolvendo maconha), o promotor de justiça Cássio Conserino, responsável
pela investigação do tráfico de drogas pela internet, também comprou e
recebeu a "mercadoria" encomendada (maconha sintética e pentedrona) no
fórum criminal da Barra Funda, em São Paulo (Folha 26/10/14). A droga
foi comprada por meio de um site localizado nos EUA, postada em
Fortaleza (CE) e entregue no "domicílio" indicado.
Cena 2: A
revolução tecnológica + os avanços químicos + a globalização estão
tornando quase impossível o controle da oferta e do consumo de drogas.
Na era prosaica da produção, as drogas saíam exclusivamente das terras
terceiro-mundistas, eram processadas de forma caseira e transportadas
atabalhoadamente para o destino final. Hoje, com os avanços químicos e a
revolução tecnológica (3ª revolução da história), tudo é processado em
laboratórios sofisticados, inclusive nos primeiros mundos, e entregue a
domicílio (com total discrição). Delivery e anonimato garantidos! Nos
escombros da internet (como comprovou o promotor) há um mundo onde o
império da lei é muito problemático (apesar dos esforços das
autoridades).
De
3 a 5% da população de todo planeta sempre consumiram drogas, em todos
os momentos da História (conforme a ONU). A procura por drogas sempre
existiu (e, provavelmente, sempre existirá). Erradicar o consumo das
drogas é uma vertigem (um delírio). O que está mudando radicalmente (com
a revolução tecnológica e o avanço da ciência química) é o lado da
oferta. Incontáveis sites convencionais (visíveis) oferecem todos os
tipos de droga imagináveis. Para cada site fechado pela polícia ou
Justiça (como o Utopia, na Holanda, em 2/14), brotam outros 10. Os
usuários mais precavidos, no entanto, para reduzir os riscos, compram a
droga no mundo invisível da "deep web" (que é centenas de vezes maior
que a internet ostensiva que conhecemos). A web é como um iceberg: a
parte que desponta para além da superfície, visível, não é nem 10% da
extensão total do conteúdo existente na rede. Essa camada mais profunda e
obscura ("rede das sombras") é conhecida como "deep web". Todo seu
conteúdo, normalmente, fica fora do alcance de qualquer mecanismo de
pesquisa, como o Google. Só pode ser alcançado por softwares
sofisticadíssimos. Nela há de tudo, principalmente tudo que é proibido.
Fecha-se um site (como o Silk Road foi fechado em 2013, pelo FBI),
abrem-se outros 10 para preencher o vazio (Agora, Evolution etc.). O
número de artigos à venda somente nos 18 criptomercados acompanhados
pela DCA (Digital Citizens Alliance) passou de 41 mil para 66 mil entre
janeiro e agosto de 2014 (Carta Capital).
No site Evolution as ofertas cresceram 20%, para 36 mil produtos, somente nos dois últimos meses - julho e agosto/14 (Carta Capital).
São faturados milhões de dólares por ano nesse mercado. Os compradores,
do mundo inteiro, usam pseudônimos para não serem identificados. Tudo é
enviado pelo correio (com alta taxa de satisfação dos clientes).
Garante-se o anonimato. A compra de drogas no criptomercado (cocaína,
heroína, maconha etc.), apesar dos problemas, é muito mais segura que
nas ruas. O Silk Road 2.0 (que foi reaberto depois de fechado pelo FBI,
repita-se) movimentou US$ 1,2 bilhão entre 2011 e 2013, com a
comercialização de drogas como haxixe do Marrocos, cogumelos dos Estados
Unidos e cocaína da Holanda, e de remédios controlados, aparelhos para
espionagem, joias falsas e pornografia.
O
anonimato referido fica mais blindado ainda se o comprador usa a moeda
virtual chamada "bitcoin", que possibilita a realização de transações
cifradas. De acordo com o site Tech Tudo, a Bitcoin é uma unidade
monetária online, criada em 2009, e que permite a transferência anônima
de valores. É uma moeda descentralizada, ou seja, não conta com nenhum
órgão responsável pelo seu gerenciamento. Está fora, até agora, do
controle eficaz dos governos e dos fiscos. As transações de Bitcoins são
feitas a partir da rede de compartilhamentos P2P (pontoaponto). Elas
são geradas por seus próprios usuários, por meio do processamento dos
computadores, bastando o usuário instalar o programa necessário para
participar da rede de moedas no seu PC (o programa funciona em todos os
sistemas operacionais). A medida é uma forma de prevenção contra uma
possível crise financeira no sistema de Bitcoin. A moeda é variável e
segue as leis de mercado (quanto maior a procura, maior sua cotação). Em
2012, seu valor era de cerca de US$ 9; em janeiro de 2013, valia cerca
de US$ 13. Já em novembro deste mesmo ano, a mesma quantidade de bitcoin
chegou a valer US$ 1.000. Hoje uma unidade sai por US$ 340, cerca de R$
990.
Mais
um detalhe que deve ser agregado à procura (demanda) por drogas (que
sempre existiu e sempre existirá) e à facilidade (e anonimato) com que a
revolução tecnológica promove a oferta: trata-se da sofisticação da
ciência química que fabrica novas drogas (sintéticas) todas as semanas. O
problema: a droga nova que não está catalogada nas normas jurídicas não
constitui crime (por força do princípio da legalidade). No caso
brasileiro, é a Anvisa (órgão do Ministério da Saúde) que faz essa
catalogação. Ela agora corre todos os dias atrás da evolução química. A
cada atualização da lista, dezenas de outras drogas novas aparecem no
mercado. Enquanto não catalogadas, não constituem o delito de tráfico de
drogas. A droga encomendada pelo promotor está catalogada em outros
países (EUA, Nova Zelândia, Japão), mas não no Brasil. O réu então que
trafica esse tipo de droga (até que ela esteja descrita nas listas
brasileiras) não pode ser enquadrado no tráfico de entorpecentes.
Em
fevereiro de 2014, a Anvisa aprovou a inclusão de 21 substâncias na
lista citada. Com a decisão da Diretoria Colegiada da Agência foi feita a
atualização da Portaria 344/98, que define as regras para substâncias
de controle especial e substâncias proscritas (proibidas) no Brasil.
Além disto, a Anvisa aprovou atuar em sintonia com as decisões sobre
substâncias ilícitas adotadas por agências congêneres ou por polícias
científicas internacionais, para agilizar o trâmite desta matéria, e
atualizar a lista de substâncias proscritas à medida que os pedidos
cheguem à Agência e não em um único processo, como acontecia até agora. A
atualização da lista partiu de solicitações da Junta Internacional de
Fiscalização de Entorpecentes (Jife), ligada à Organização Mundial de
Saúde (ONU), do Ministério Público Federal e da Polícia Federal. Ocorre
que o aggiornamento chega sempre tarde. Quando acontece, novas
drogas já foram inventadas (porque tudo deriva de meros processos
químicos). As drogas novas são produtos que simulam efeitos semelhantes
aos das drogas ilícitas já conhecidas, como ópio, heroína e LSD; agem
sobre o sistema nervoso central e provocam alucinações.
Na
Europa, a quantidade, o tipo e a disponibilidade de novas drogas
sintéticas aumentaram consideravelmente em 2012, proliferando a oferta
pela internet. De acordo com o relatório Avaliação Global de Drogas
Sintéticas 2014, apresentado pela UNODOC este ano, novas substâncias
psicoativas (NSP) estão ocupando lugar proeminente, num mercado que
durante muitos anos foi dos estimulantes anfetamínicos (ATS), como o
ecstasy e a metanfetamina; os novos produtos hoje (em muitos lugares)
são mais usados do que cocaína, ópio ou heroína. As drogas sintéticas
ganharam popularidade entre os jovens e em algumas partes da América
Central e do Sul o uso deles em grupos etários mais jovens às vezes até
ultrapassa o da cannabis e/ou cocaína. O relatório também alerta sobre o
surgimento de substâncias novas como o composto NBOMe, que já foi
encontrado no Brasil, Chile e Colômbia. Esta nova droga é mais conhecida
no Brasil como N-Bomb. Comercializadas como "drogas legais" e "designer
drugs", as NSP estão proliferando, e na ausência de um quadro legal
internacional as respostas para o problema variam significativamente de
país para país. Nenhuma das 348 NSP que existiam globalmente em mais de
90 países no final de 2013 está sob controle internacional. O uso de
canabinoides sintéticos, que imitam os efeitos da cannabis, também é
crescente. A oferta agora, como se vê, sai de laboratórios sofisticados
(e ricos). Demandas crescentes + ofertas abundantes + compraevenda no
anonimato = dificuldade quase incontornável de repressão.
O
relatório ainda aponta que uma das características do mercado de drogas
global é que as novas drogas emergem rapidamente em qualquer parte do
mundo. Segundo o relatório, em 2013, 348 novas drogas foram reportadas à
UNODC em todo mundo: a maioria delas foi inventada entre 2008 e 2013.
Apesar disso, o número de novas descobertas pode ser ainda mais alto,
visto que em seus relatórios a organização faz uso apenas de dados
oficiais. Em 2012, foram reportadas 251 novas drogas, número que e em
2009 era de 166. Já no tempo analógico, os governos sempre se mostraram
incapazes de controlar a demanda assim como a oferta. Na era digital
essa incapacidade tornou-se crônica. O Estado moderno, em seu delírio de
onipotência, não vê que é impossível controlar o que cada um quer fazer
com seu próprio corpo. A revolução tecnológica + os avanços da química
estão derrotando de forma ainda mais acachapante a repressão.
Daí
a imperiosa necessidade de políticas preventivas (conscientizadoras),
despontando-se a educação de qualidade para todos, em período integral,
até à Universidade. Pesquisas mostram que diminuíram em 34% os usuários
do cigarro, entre 1989 e 2004. Essa mesma política deve ser adotada
prioritariamente em relação às outras drogas, ao álcool, ao açúcar etc. O
único caminho seguro é o da conscientização. A estratégia da repressão,
que já está completando 100 anos, naufragou (porque muitas vezes não
passa de demagogia que explora a emotividade da população). A
complexidade técnica das "deep webs", a separação física entre o
comprador e o vendedor, o uso de moedas virtuais, a evolução rápida das
ciências químicas e sua mobilidade do mundo virtual globalizado estão
tornando a repressão tradicional uma política de Estado deveras
ineficaz.
As
drogas são maléficas para a saúde (assim como o álcool, o tabaco, o
açúcar etc.). As ciências médicas tornaram isso indiscutível. Mas esse
não é o único consenso em torno delas: o outro é que aguerra repressiva (decretada
em 1971, por Richard Nixon) fracassou, sobretudo nos países
terceiro-mundistas, com instituições capengas, onde o império da lei é
precário ou praticamente nulo. A repressão não vem produzindo resultados
positivos (diminuição do consumo ou da oferta) e sabe-se que ela gera
muitas consequências negativas (como o encarceramento massivo de pobres e
pequenos traficantes, que constituem 25% dos presídios brasileiros).
Pensar de forma contrária é pura emoção e/ou ignorância, que remam
contra a maré (numa espécie de nova marcha da insensatez). Enquanto os
traficantes (incluindo-se agora os virtuais) vendem drogas, para
combatê-los o legislador brasileiro, aproveitando-se da emotividade
popular, vende o entorpecente das leis penais novas mais duras ("leis
duríssimas", dizem). Delírio puro!
A
cada modificação legislativa os criptomercados respondem com mais
produtos e novos avanços tecnológicos e químicos. Por esse caminho
ineficaz a humanidade não vai alcançar nenhum tipo de equilíbrio para a
questão do uso e comercialização de drogas, que são mais antigas que
andar para frente (dela já fazia uso o imperador chinês Shen Nung, em
2.727 a. C.). A boa política reside na educação imediata de todos (em
período integral). Os jovens dos países mais civilizados, com economia
distributiva (Escandinávia, Canadá, Coreia do Sul etc.), são os mais bem
informados e, consequentemente, os que menos usam drogas no planeta.
Não existe nenhuma lei impeditiva de serem colocados amanhã mesmo todos
os jovens (crianças e adolescentes, todos) em escolas de qualidade, em
período integral. Essa é a primeira grande revolução que a parceria
público/privada deveria promover no nosso país. Tudo o mais não passa de
reformas ou, quando muito, de uma demão de tinta nas paredes gastas do
enigmático humano (que resiste enxergar o óbvio ululante).
*Colaborou Flávia Mestriner Botelho, socióloga e pesquisadora do Instituto Avante Brasil.
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