Artigo do Jurista e Professor Luiz Flávio Gomes | Contato para Entrevista, Opinião Jurídica e Palestras
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Artigo 07 de Novembro 2014
"Juiz não é Deus", mas "Você sabe com quem está falando"?
Cena 1: Uma
servidora do Detran-RJ, numa blitz (em 2011), parou um veículo que
estava sem placa. A nota fiscal que portava já tinha prazo vencido. O
motorista, ademais, não portava a carteira de habilitação (tudo isso foi
reconhecido em sentença da Justiça). Quem era o motorista? Um juiz de
direito. A servidora (que fez uma dissertação de mestrado sobre ética na
administração pública) disse que o carro irregular deveria ser
rebocado. Essa providência absolutamente legal (válida para todos) foi a
causa do quid pro quo armado. Ele queria que um tenente a prendesse.
Este se recusou a fazer isso. Chegaram os PMs (tentaram algemá-la). A
servidora disse: "Ele não é Deus". O juiz começou a gritar e deu voz de
prisão, dizendo que ela era "abusada" (quem anda com carro irregular,
não, não é abusado). Ela processou o juiz por prisão ilegal. O TJ do RJ
entendeu (corporativamente) que foi a servidora que praticou ilegalidade
e abuso (dizendo que "juiz não é Deus"). Alegação completar da
servidora: "Se eu levo os carros dos mais humildes, por que não vou
levar os dos mais abastados?; Posso me prejudicar porque fiz meu
trabalho direito".
Cena 2: O
TJ do RJ condenou a servidora a pagar R$ 5 mil por danos morais ao juiz
"ofendido" em sua honra (a servidora agiu mesmo sabendo da relevância
da função pública por ele exercida). Diz ainda a sentença (acórdão): "Dessa
maneira, em defesa da própria função pública que desempenha, nada mais
restou ao magistrado, a não ser determinar a prisão da recorrente, que
desafiou a própria magistratura e tudo o que ela representa". "Além
disso, o fato de o recorrido se identificar como Juiz de Direito não
caracteriza a chamada "carteirada", conforme alega a apelante." Uma
"vaquinha" na internet já arrecadou mais de R$ 11 mil (a servidora diz
que dará o dinheiro sobrante para entidades de caridade). Ela foi
condenada porque disse que "juiz não é Deus" (ou seja: negou ao juiz
essa sua condição). Heresia! Isso significa ofensa e deboche (disse o
TJRJ). O CNJ vai reabrir o caso e apurar a conduta do juiz. Em outra
ocasião a mulher de um "dono do tráfico" no morro também já havia dito
para a servidora "Você sabe com quem está falando?".
01.
Construímos no Brasil uma sociedade hierarquizada e arcaica,
majoritariamente conservadora (que aqui se manifesta em regra de forma
extremamente nefasta, posto que dominada por crenças e valores
equivocados), que se julga (em geral) no direito de desfrutar de alguns
privilégios, incluindo-se o de não ser igual perante as leis(nessa suposta "superioridade" racial ou socioeconômica também vem incluída aimpunidade,
que sempre levou um forte setor das elites à construção de uma
organização criminosa formada por uma troika maligna composta de
políticos e outros agentes públicos + agentes econômicos + agentes
financeiros, unidos em parceria público-privada para a pilhagem do
patrimônio do Estado - PPP/PPE). Continuamos (em pleno século XXI) a ser
o país atrasado do "Você sabe com quem está falando?" (como bem explica
DaMatta, em várias de suas obras). Os da camada "de cima" (na nossa
organização social) se julgam no direito (privilégio) de humilhar e
desconsiderar as leis assim como os "de baixo". Se alguém questiona essa
estrutura, vem o corporativismo e retroalimenta a chaga arcaica. De
onde vem essa canhestra forma de organização social? Por que somos o que
somos?
02. Somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra (disse Sérgio B. De Holanda,Raízes do Brasil)
porque aqui se implantou uma bestial organização social hierarquizada
(desigual), que veio de outro clima e de outras paragens, carregada de
preconceitos, vícios, privilégios e agudo parasitismo (veja Manoel
Bomfim). Esse modelo de sociedade foi feito para o desfrute de poucos
(do 1% mais favorecido). Poucos eram os colonos nestas inóspitas bandas
que podiam receber um título de cavaleiro ou de fidalguia ou de nobreza.
Contra essa possibilidade de ascensão os portugueses invocavam dois
tipos de impedimentos (que não alcançavam os brancos católicos,
evidentemente): (a) o defeito de sangue (sangue infecto dos judeus, mouros, negros, índios ou asiáticos); (b) o defeito mecânico (mãos
infectas dos que faziam trabalhos manuais ou cujos ancestrais tivessem
praticado esse tipo de trabalho). Nem mesmo os leais ao monarca podiam
galgar os privilégios e as graças da monarquia (ou seja: subir na
mobilidade social), caso apresentassem um desses defeitos, que depois
foram ampliados para abarcar os pobres, as mulheres, as crianças, os
portadores de deficiência física, os não proprietários, os não
escolarizados etc.
03.
Ocorre que no tempo da colônia brasileira (1500-1821) e do Império
(1822-1888) pouquíssimas pessoas não estavam contaminadas por uma das
duas máculas matrizes. Quais foram, então, as saídas para se ampliar
aqui também uma organização social dividida em classes? Ronald Raminelli
(em Raízes da impunidade) explica: a primeira foi o rei perdoar
os defeitos e quebrar a regra para conceder títulos e honrarias aos
nativos guerreiros que defenderam Portugal, sobretudo na guerra com os
holandeses (é o caso de Bento Maciel Parente, filho bastardo de um
governador do Maranhão, do chefe indígena Felipe Camarão, do negro
Henrique Dias etc.); a segunda foi que aqui, apesar do defeito de sangue
ou mecânico, foram se formando novas oligarquias (burguesias), que
acumularam riquezas e se tornaram potentes com suas terras, seus
engenhos, plantações, quantidade de escravos, vendas externas, exércitos
particulares etc. Surge aqui o conceito de "nobreza da terra" (que não
podia ser excluída das camadas superiores).
04.
Ao longo dos anos, como se vê, o tratamento dado às várias camadas
sociais foi se amoldando ao nosso tropicalismo (foram se
abrasileirando). A verdade, no entanto, é que nem sequer em Portugal
nunca foi cristalinamente rígida a separação das classes sociais. Lá
nunca houve uma aristocracia hermeticamente fechada (veja S. B. De
Holanda). Praticamente todas as profissões contavam com homens fidalgos -
filhos-de-algo, salvo se viviam de trabalhos mecânicos (manuais).
O princípio da hierarquia, então, entre nós, nunca foi rigoroso e
inflexível; nem poderia ser diferente porque aqui se deu uma
generalizada mestiçagem (casamentos de portugueses com índias ou com
negras), embora fosse isso duramente criticado pelos pseudo-intelectuais
racistas, sendo disso Gobineau um patético e psicopático exemplo, que
previam o fim do povo brasileiro em apenas dois séculos, justamente em
virtude dessa miscigenação das raças (que afetava o crânio das pessoas,
na medida em que o crânio tinha tudo a ver com o líquido seminal).
05. As elites que foram se formando (as oligarquias colonialistas) passaram a ser conhecidas como "nobreza da terra" e
foram ocupando os postos de destaque na administração, nos cargos
militares, na Justiça (juízes e promotores), na esfera fiscal, no
controle dos recursos públicos etc. Quando Portugal passava pelos
constantes apertos econômicos, os títulos da nobreza eram comprados
pelos barões, duques, condes e marqueses. Foram essas as primeiras
oligarquias que dominaram a população nativa (poucos brancos e muitos
mestiços, índios, pretos alforriados e escravos), mandando e
desmandando, com seus caprichos, arbitrariedades e privilégios,
destacando-se o da quase absoluta impunidade pelos crimes praticados. Do
ponto de vista do controle social, a colônia foi um grande campo de
concentração (subordinado aos caprichos do mandante). Os militares
sempre constituíram uma classe privilegiada, acima das leis do rei;
contrariavam as leis e eram tolerados pelo seu poder e pelas suas armas,
assim como pela capacidade de liderar tropas e defender os interesses
da monarquia. Ainda hoje contam com uma Justiça especial, um foro
especial, distinto dos demais criminosos. Outro exemplo de privilégio é o
foro especial para os altos cargos da nação assim como a prisão
especial (cautelar) para aqueles que possuem curso superior.
06.
"Num ambiente em que todos sempre foram desiguais perante a lei, a
desigualdade não é problema. É tradição" (R. Raminelli). No Brasil,
portanto, todos (tradicionalmente) lutam por privilégios (não por
igualdades de oportunidades ou mesmo igualdade perante a lei). O que nos
compraz é o privilégio, não a igualdade. Triste país o que está tão
perto dos caprichos e dos personalismos, dos desmandos, da ausência do
império generalizado da lei, dos privilégios, das imunidades de classe
(impunidade, v. G.) e tão longe da igualdade de oportunidades assim como
da igualdade perante as leis. Temos muita dificuldade de lidar com as
normas gerais (no trânsito, por exemplo) porque (os elitizados, os das
camadas de cima) são criados em casas (e escolas) onde, desde a mais
tenra idade, se aprende (educação se aprende em casa!) que há sempre um
modo de satisfazer nossas vontades e desejos (e caprichos), mesmo quando
isso vá de encontro com as normas do bom-senso e da coletividade
(DaMatta, O que faz o brasil, Brasil?.
07. O dilema brasileiro (segue o autor citado) reside no conflito entre a observância das leis gerais e o "jeitinho" que se pode encontrar para burlá-las em razão dasrelações pessoais.
Nós não admitimos (em geral) ser tratados como a generalidade, sim,
queremos sempre o atalho, o desvio, o respeito incondicional à nossa
"superioridade natural". O indivíduo que deve obedecer as leis gerais não é a mesmapessoa (distinguida)
que conta com relações sociais e privilégios "naturais" (que não
poderiam ser contestados). O coração do brasileiro elitizado,
hierarquicamente "superior", balança entre esses dois polos (DaMatta).
No meio deles está a malandragem, a corrupção, o jeitinho, os
privilégios, as mordomias e, evidentemente, o "Você sabe com quem está
falando?". Claro que a lei, com essa mediação social, fica
desprestigiada, desmoralizada. Mas ela é insensível e todos que pisam na
sua santa generalidade e igualdade (um dos mitos com os quais os
operadores jurídicos normativistas trabalham) ficam numa boa e a vida
(depois do desmando, do capricho, da corrupção, do vilipêndio, do crime
impune, do jeitinho, da malandragem) volta ao seu normal (DaMatta).
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