A questão haitiana
Mauro Santayana
Há alguns
meses, tocamos aqui no problema dos imigrantes haitianos, que se
acumulavam como gado, em um ”abrigo” no Acre, enquanto o governo acreano
pedia, a Brasília, o fechamento da fronteira com o Peru, para diminuir o
fluxo de “refugiados”.
O povo haitiano tem sido historicamente
explorado. Primeiro, pelos espanhóis, depois, pelos franceses, os
ingleses e norte-americanos, e vários ditadores, entre eles François
Duvalier, o “Papa Doc”, que, além de café e açúcar, enviava, em conluio
com mafiosos franceses, para o exterior, também o sangue e o plasma
recolhidos, em troca de centavos, de seu povo.
Se antes, os
haitianos eram explorados pelos colonos brancos, hoje, com o país
destruído pela miséria e o terremoto, eles o são pelos “coyotes” que, em
troca de pesadas dívidas, e usando seus familiares que ficam no Haiti
como reféns ou como escravos, os enviam para outros países, como o
Brasil, para que trabalhem, apenas para pagar a “viagem”, durante anos.
Para
o Brasil, portanto, não se trata de um gesto humanitário aceitá-los em
nossas fronteiras, já que, com isso, só estamos enriquecendo os modernos
traficantes de escravos e os bandidos peruanos que os atravessam para o
lado brasileiro.
Se quiséssemos recebê-los por aqui, bastaria
obedecer às cotas já ofertadas para imigrantes legais haitianos, nas
representações diplomáticas brasileiras em Porto Príncipe.
Trazendo-os
diretamente para o Brasil, diminuiríamos o número de vítimas dos
traficantes. Mas só poderíamos fazê-lo se tivéssemos como oferecer-lhes
capacitação profissional e em nosso idioma, na chegada, e não
estivéssemos apenas abarrotando abrigos insalubres, durante meses, com
essas pessoas.
Desde 2010, quase 20 mil haitianos já entraram no
Brasil por essa rota, e depois de ficarem algum tempo no Acre, se
espalharam pelo país.
Nas últimas semanas, 2.500 deles ficaram
impedidos de fazê-lo, por causa da cheia do Rio Madeira, e o governo
acreano resolveu enviá-los para outros estados, principalmente da Região
Ssudeste, usando aviões que levavam mantimentos ao Acre.
Ao que parece, estabeleceu-se certo sentimento de culpa, como se estivéssemos no Haiti como tropa de ocupação
Trata-se
de um êxodo descoordenado e improvisado, a ponto de o governo de São
Paulo ter emitido, ontem, nota reclamando da chegada de 400 haitianos à
capital paulista, sem aviso prévio, nos últimos 15 dias, e classificando
a atitude do governo acreano de “irresponsável”.
Quando o
governo brasileiro aceitou o comando militar da Minustah (Missão de
Estabilização do Haiti), em 2004, a pedido do Conselho de Segurança das
Nações Unidas, abriu-se caminho, especialmente depois do terremoto de
2010, para o maior envolvimento com a população local, considerando-se a
natural solidariedade que seu sofrimento despertou entre nossos
soldados.
A questão é que, a partir de certo momento, o Brasil
passou a agir, de fato, como se fôssemos, como nação, culpados pela
situação haitiana, ou tivéssemos, como a Europa, a França e os Estados
Unidos, no passado, explorado suas riquezas, invadido seu território, ou
massacrado sua população.
Ao que parece, estabeleceu-se, em
alguns círculos, incluindo o governo, certo sentimento de culpa, como
se não estivéssemos no Haiti sob mandato imperativo das Nações Unidas,
mas como tropa de ocupação. E fôssemos obrigados, por isso, a tratar os
haitianos de forma diferente da que tratamos, por exemplo, nossos
vizinhos da América do Sul. Aceitando a sua entrada, de forma maciça e
desordenada, por nossas fronteiras, quando não temos condições sequer de
assegurar dignidade, educação, saúde, e condições mínimas de
infraestrutura e segurança a milhares de cidadãos acreanos, que, sem
emprego e ocupando palafitas na periferia, vivem de forma não muito
diferente das condições em que vivem os cidadãos do Haiti.
O que
ocorrerá se, amanhã, devido a uma crise ou desastre natural, milhares de
paraguaios, bolivianos, nicaraguenses ou hondurenhos, resolverem fazer o
mesmo, e se dirigirem, à razão de dezenas de pessoas por dia, para
outro município brasileiro?
Teremos o direito de tratá-los de forma diferente da que estamos tratando os imigrantes haitianos até agora?
O
governo brasileiro está simplesmente ignorando e empurrando com a
barriga a questão da imigração haitiana. Ao que parece, já foi tomada a
decisão de retirar nossos soldados daquela ilha, com o próximo fim da
Minustah. É preciso, agora, que o governo federal exija do governo
peruano o fim do tráfico de pessoas – que envolve corrupção e dezenas de
milhares de dólares por dia – em seu território, para o Brasil.
Ou
blindar a fronteira com o Exército, antes que a situação fique
definitivamente comprometida e insustentável, do ponto de vista do
controle dos milhares de quilômetros de fronteira que compartilhamos na
América do Sul.
Se quisermos ajudar os haitianos, podemos
construir escolas, enviar tecnologia agrícola ou montar cooperativas de
trabalho naquele país.
Incentivar a emigração deles para o Brasil
– como estamos fazendo, por omissão, agora – não vai resolver nossos
problemas, nem os problemas do Haiti.
Mauro Santayana é jornalista e meu amigo
Nenhum comentário:
Postar um comentário