Opinião

A Novilíngua

A moda agora é dizer que todos foram contra a deposição de João Goulart. Aliás, a julgar pelos depoimentos que lemos e vemos hoje, tirando meia dúzia de milicos todo mundo era janguista fanático, doido pelas reformas de base.

Não é verdade: as marchas da família reuniram multidões (até Lula participou da marcha paulista), D. Paulo Evaristo Arns abençoou os cadetes da Academia Militar das Agulhas Negras rebelados contra o presidente, a CNBB louvou o movimento militar. A tortura e a ditadura mudaram as opiniões e as tendências, mas a deposição de Jango teve amplo apoio da opinião pública. E, claro, não esqueçamos a música popular: Billy Blanco, o excelente compositor de Estatutos de Gafieira, da maravilhosa Teresa da Praia, da A Banca do Distinto ("não fala com pobre, não dá mão a preto, não carrega embrulho/ pra que tanta pose, doutor/ pra que tanto orgulho"), de Samba Triste, parceiro de Baden Powell, de Tom Jobim, fez também Rio do meu amor ("Rio de Janeiro, Rio de Janeiro/do grande carnaval do 1º de abril/ da Vila que desceu, do dólar que caiu").

Mas isso é questão de História. O problema que surge é outro: o patrulhamento pesado, cinquenta anos depois. Um grande banco fez, no seu calendário, uma referência à Revolução de 31 de março; o fato foi denunciado - sim, em termos de denúncia grave -e o banco se sentiu obrigado a retirar o calendário de circulação.

Dizer que a oposição armada não queria democracia, mas outra ditadura, a ditadura do proletariado, virou ofensa pessoal (e isso apesar de um dos principais participantes da luta armada, Fernando Gabeira, que participou do primeiro grande golpe na estabilidade da ditadura militar, o sequestro do embaixador americano Charles Burke Elbrick, ter dito isso com todas as letras). Besteirada: Revolução, Quartelada, Golpe, Golpe Militar, Golpe Civil-Militar, ditadura, regime autoritário, todos esses nomes designam coisas diferentes nos livros de História. Mas na linguagem cotidiana vale a imortal frase de Shakespeare, em Romeu e Julieta: "Se a rosa tivesse outro nome, ainda assim teria o mesmo perfume". Ou, no caso da ditadura militar, com suas atrocidades, o mesmo fedor.

O preocupante, no caso dos meios de comunicação, não é apontar os males da ditadura (que já é, em si, um mal gigantesco): é exigir a unanimidade não apenas nas opiniões, mas também nos nomes dados aos fatos. Lembra, a propósito, o que acontecia nos tempos da ditadura, quando era proibido chamar o guerrilheiro por qualquer outro nome que não "terrorista", e o presidente Geisel, ditador e autoritário, dizia que o regime brasileiro não era uma ditadura, mas uma "democracia relativa" - onde o presidente relativo tinha o poder de fechar o Congresso quantas vezes quisesse, e várias vezes o fez.

Fala-se muita bobagem sobre os tempos da ditadura - inclusive uma inacreditável, a de que naquela época não havia roubalheira. Havia, caro colega, havia. Basta lembrar uma certa história de pérolas. Ou procurar, perto do Litoral Norte de São Paulo, os vestígios de uma estrada que ligaria Santos ao Rio, que custou muito caro e nunca foi concluída. Nesses vestígios arqueológicos há um túnel provavelmente único no mundo, já que prescinde da habitual montanha em cima.

Ou de que, nos tempos da ditadura, era possível andar tranquilo nas ruas. Não, não era. Até 1967, aproximadamente (citando de memória, sem recorrer a pesquisas), ainda havia certa segurança nas ruas. Mas antes de 64 a segurança era muito maior. E, de 67 em diante, a insegurança só fez ampliar-se. Basta lembrar que Paulo Maluf, governador de São Paulo (e tão ligado aos generais quanto o é hoje ao PT), disse que iria combater a violência "botando a Rota na rua". A Rota, a letal tropa de choque da Polícia Militar paulista, tinha liberdade total de ação - e, apesar disso, a insegurança continuou crescente.

Enfim, quem quiser falar bobagens sobre a ditadura que o faça: é parte da democracia. Quem quiser criticar duramente a ditadura, ou o regime militar, ou o regime civil-militar, ou seja lá o nome que se queira dar, que o faça: argumentos não lhe faltarão. São tantos argumentos, aliás, que é desnecessário patrulhar os adversários e obrigá-los a usar uma linguagem que não é a deles, com determinados nomes que eles preferem não usar.

É claro que achamos que nossos adversários estão errados; se concordássemos com eles, não seriam nossos adversários. Mas nada melhor do que enfrentá-los no debate, sem tentar impor-lhes o pensamento uniforme.
Do Brickman

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