Especial


O drama das crianças à espera de família

Para ajudar crianças e adolescentes institucionalizados, Assembleias criam frentes parlamentares dedicadas a assuntos de adoção


O número de pessoas interessadas em adotar é cinco vezes maior do que o número de crianças e adolescentes à espera de uma nova família, segundo o Cadastro Nacional de Adoção, divulgado recentemente pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). O cadastro mostra que há 4,9 mil crianças e adolescentes registrados para adoção no Brasil e 26.936 pretendentes inscritos.
Para o CNJ, três fatores têm dificultado a adoção. O primeiro deles é o perfil exigido pelos pretendentes: de acordo com o cadastro, 9.842 (36,54% do total) daqueles que querem adotar preferem crianças ou adolescentes brancos. No entanto, quase metade das crianças disponíveis para adoção (2.272 no total) é parda. Crianças brancas somam 1.657, apenas 33,82% do total.
Outro entrave, segundo o CNJ, refere-se à faixa etária. Mais da metade dos pretendentes (cerca de 59%) querem adotar crianças de até três anos de idade. Além disso, boa parte deles resiste em adotar grupos de irmãos. Segundo o cadastro, 22.341 pretendentes desejam adotar apenas uma criança. Das crianças e adolescentes disponíveis para adoção, 3.780 têm irmãos.
Mas o maior obstáculo, na avaliação de especialistas e militantes pró-adoção, é a lentidão da Justiça e a falta de uma estrutura mais ágil nas varas de infância.
Para uma criança abrigada ser considerada apta a ser adotada é preciso primeiro que a Justiça declare que ela não pode mais voltar para a família original. É a destituição do poder pátrio. Essa primeira etapa num processo de adoção tem prazo limite de 2 anos, determinado pela Lei Nacional de Adoção, sancionada pelo presidente Lula em agosto de 2009.
Mas na maioria dos casos, devido à morosidade judicial, esse prazo excede o limite previsto pela lei. “A família abandona a criança, a criança vai para o abrigo, mas, passa algum tempo, a família vai ao abrigo pedir a criança de volta para tempos depois desistir dela de novo”, explica Bárbara Toledo, presidente da Associação Nacional dos Grupos de Apoio à Adoção.
Para o deputado federal Gabriel Chalita (PMDB-SP), presidente da Frente Mista em Favor das Políticas de Adoção do Congresso Nacional, “o ideal seria menos crianças para cada juiz nas varas de adoção, para que o juiz conhecesse caso a caso e pudesse acelerar o processo de tornar aquela criança disponível para a adoção, impedindo que a criança volte para um lar onde houve abandono e violência e de novo volte ao abrigo”.
MOBILIZAÇÃO PARLAMENTAR
Para tentar resolver esse e outros problemas, as Assembleias Legislativas do Rio de Janeiro e de São Paulo criaram, nos últimos meses, frentes parlamentares dedicadas a assuntos de adoção, com o objetivo de lutar por mais varas especializadas, capacitar e contratar pessoal e acompanhar crianças e adolescentes abrigados.
No Ceará, mais de 500 crianças e adolescentes estão em abrigos aguardando a decisão da Justiça para poder ser acolhidos por uma nova família. Desses meninos e meninas, somente 65 estão disponíveis para adoção.
Ante esse quadro, a deputada Bethrose (PRP) (FOTO), presidente da Comissão de Infância e Adolescência do Legislativo cearense, planeja a criação de uma subcomissão. “É preciso desburocratizar e agilizar os processos de adoção de crianças e adolescentes. Precisamos examinar a situação dessas crianças nos abrigos do Estado”, diz Bethrose. “Esta é uma bandeira de todos, acima de partidos políticos. Estamos falando de um problema que deve sensibilizar a sociedade de maneira geral e principalmente o Poder Judiciário, que está deixando a desejar na criação de mais varas para crianças e adolescentes”.
Para a deputada Patrícia Saboya (PDT), integrante da Comissão da Infância e Adolescência da Assembleia e mãe adotiva, “é essencial investirmos em campanhas públicas maciças de sensibilização da sociedade. A adoção é um gesto supremo de amor, e o amor não precisa ter idade, sexo ou etnia”.
MARCAS EMOCIONAIS
O promotor de Justiça Sávio Bittencourt, pai de cinco filhos, dois deles adotados, afirma que “o abrigamento se tornou uma medida vulgarizada, exercida sem controle estatal. São milhares de crianças brasileiras institucionalizadas por anos a fio”.
A falta de lar e afeto deixa marcas emocionais. “A experiência tem demonstrado que a criança tende a ser visitada pela família biológica nos primeiros meses de abrigamento e depois vai sendo esquecida, com visitas escassas”, conta Bittencourt. “Vão assim crescendo com prejuízo à sua autoestima e à formação de sua personalidade, sem esperança que as instituições do poder público responsáveis por sua tutela tenham consciência da gravidade e urgência deste problema social”.
NOVA ESCRAVIDÃO
O abandono é agravado pelo funcionamento caótico dos abrigos, denuncia o promotor. “Há abrigos que não trabalham com adoção, quando, na verdade, isso não é uma escolha do abrigo. Só esse fato já merece uma investigação por parte do Ministério Público. Temos que pleitear uma CPI dos abrigos, para que cada irregularidade seja apontada. Estamos diante de um grande escândalo que não pode sobreviver ao século XXI. Estamos tratando de uma nova escravidão, tão repugnante quanto”.
Citando dados do “Levantamento Nacional dos Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede de Serviço de Ação Continuada”, feito pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Bittencourt faz um clamor ao poder público em favor desses jovens desamparados. “Das crianças e adolescentes nas instituições, 52,6% deles encontravam-se há mais de dois anos no abrigo. Cerca de quase 20% da população infanto-juvenil institucionalizada está há mais de seis anos nos abrigos, longe de sua família e sem que tenham sido encaminhadas para uma família substituta. Os historiadores do futuro julgarão este quadro de abandono com a mesma repulsa e nojo com o que nós julgamos a escravidão no Brasil do século XIX. Nossa história atual clama por novos abolicionistas. Quem se habilita?”

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