Pensar engorda


“Daí ter há muito reparado que o peso os sacos aumenta quando penso o quão pesado eles são”
Por:João Miguel Tavares, jornalista (jmtavares@cmjornal.pt)
Já repararam como o peso dos objectos aumenta quando pensamos neles? É certo que a Física ainda não formulou nenhuma lei para esta minha brilhante constatação, mas tenho provas do que estou a dizer. Eu vivo num segundo andar sem elevador e cabe-me a responsabilidade de acartar com os sacos das compras desde o carro até à despensa. A minha excelentíssima esposa fica em casa a guardar os três miúdos e eu vou galgando escadas com embalagens de leite, dezenas de iogurtes, uma piscina de detergente para a máquina e cerca de 10% da secção de congelados do Continente. Vai acima e vem abaixo, vai abaixo e vem acima.
A coisa é, obviamente, uma chatice monumental, que me dá cabo das costas e da paciência. Daí ter há muito reparado que o peso dos sacos aumenta quando penso o quão pesado eles são. Se o meu pensamento, por outro lado, estiver a vaguear longe, a reflectir sobre o próximo texto para esta página ou sobre qual a letra do abecedário que melhor assenta na copa do sutiã da Vanessa Oliveira, a tarefa torna-se bem mais leve e a embalagem com seis pacotes de leite Mimosa deixa de pesar seis quilos.
Ora, qual não é o meu espanto quando, ao ler o último e mui belo romance de Gonçalo M. Tavares (chama-se ‘Matteo Perdeu o Emprego’), deparo com estas sábias palavras: "Claro que esta mudança de peso poderia muito bem ser originada pela constante deslocação de atenção de Ashley. A sua cabeça, e com ela não apenas músculos e ossos mas o de que mais espiritual existe dentro dela, virava-se alternadamente para o embrulho e para o mundo. E nesta última posição mental o peso do embrulho desaparecia; como se levasse nas mãos um buraco."
"É isto, é isto mesmo", pensei de mim para mim. Tudo no mundo se torna mais leve quando deslocamos a nossa atenção para outro lado, e isso tanto se pode aplicar ao leite meio gordo como à maior parte dos problemas domésticos. E não, não me estou a referir à arte de vedar torneiras ou de enfiar pregos sem cair o estuque, mas sim àqueles pesos nas relações quotidianas que arrastamos sem prazer, àquelas pequenas irritações que não matam mas moem. Moral da história: estarmos atentos e lúcidos é importante, mas saber desviar o foco é, em certas situações, fundamental. Há excessos de pensamento que fazem tanto mal à nossa cabeça como as compras do supermercado à minha coluna.

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