A cronica do Airton Monte - Do Jornal O Povo

Falares de amor
A sexta-feira amanhece com uma cara simpática de um domingo nascido de uma crônica de Ciro Colares. Feliz fiquei como se houvesse ganho um presente há muito desejado e nunca recebido. Talvez porque hoje seja Dia de Natal e por mais que eu queira negar, jamais seria um dia como outro qualquer. A manhã está tão bela quanto o rosto de minha mãe no retrato da parede da sala. Sentei-me no alpendre olhando o mundo, vendo tudo que precisava ver mesmo com os portões fechados. Não careço ir lá fora, na calçada, para apreender a vida que floresce na rua. Basta-me a memória do como sempre é. Vento forte, os coqueiros do vizinho agitam suas palmas como se fossem voar. Coisa mais simples, a vida. A gente é que complica tudo. Depois sofre, se angustia, vira um muro das lamentações infindas. Que bicho mais angustiado é o homem ou se torna.

Saltando do baú das lembranças, me vem à mente uma cena poética que ontem presenciei num restaurante. Um casal de meia idade dançava de rosto colado, vez em quando trocando beijos um tantinho ardentes e olhares lânguidos, completamente alheios a tudo que os rodeava. Era como se estivessem sozinhos no meio da multidão de olhares espantados feito o meu. Achei tão bonito, tão puro, tão casto. Que bicho mais doido o amor, capaz dos gestos mais inesperados. Não respeita limites, desafia convenções, ignora preconceitos com uma sinceridade suicida. Tudo passa: o ônibus, o tempo, a idade, o governo, a chuva, a unha encravada, a felicidade, as promissórias, o Papa. Só o amor possui permanência, embora seja, por vezes , patético e frágil. O amor odeia aparências, máscaras, disfarces, mentiras.

Vontade de fumar mais um cigarro de minha cota diária. Bravamente resisto à tentação avassaladora da nicotina. Daqui a pouco fumarei, jamais agora enquanto preso estou às ânsias do desejo, penso revolucionariamente. Pois é, o amor também vicia. Todo aquele que já amou, mesmo não sendo correspondido, sabe muito bem do que estou falando. Uma noite em São Paulo, enquanto bebíamos no cruzamento da Ipiranga com a Avenida São João, Mário de Andrade me disse: amar, verbo intransitivo. Discordei na mesma hora, por que amar é o mais transitivo de todos os verbos. O casal de meia idade dançando de rosto colado ressurge em minha mente, obsessiva imagem colada a um verso de Mário Benedetti:”porque eras minha/ porque não eras minha/ porque te vejo e morro/ e pior que morro se não te vejo amor”.

Vento amainou sem que eu percebesse. A rua está estranhamente silenciosa. Acendo o maldito cigarro e a morte roça-me os lábios carinhosamente. Entanto, a vida imediatamente me abraça com um furor feraz de uma jovem amante. Não é mesmo assim que vivemos todos divididos? Um passarinho amarelo e atrevido pousa a três passos de mim. Assobia uma canção desconhecida que cada pássaro inventa do nada. Sorrio largo como há muito tempo não sorria. Minha filha Bárbara pede que eu traduza umas estrofes de Neruda: “como todas as coisas estão cheias de minha alma/ emerges tu das coisas, cheia de minha alma/ borboleta de sonho, és como minha alma/ e te pareces à palavra melancolia”. Sim, eu queria falar algo mais sobre o amor, mas nem precisa.

Um comentário:

  1. BRAVOOOOO! LINDO.

    BOAS FESTAS. FELIZ ANO NOVO. GRANDES REALIZAÇÕES. SUCESSO. MUITO AMOR.

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