O Vendedor de palavras

Um comerciante decidiu ajudar a combater a "indigência lexical" do
país, mas ao melhor preço do mercado: ouviu dizer que o Brasil sofria
de uma grave falta de palavras. Em um programa de TV, viu uma
escritora lamentando que não se liam livros nesta terra, por isso as
palavras estavam em falta na praça. O mal tinha até nome de batismo,
como qualquer doença grande, “indigência lexical”.

Comerciante de tino que era, não perdeu tempo em ter uma idéia
fantástica. Pegou dicionário, mesa e cartolina e saiu ao mercado cavar
espaço entre os camelôs. Entre uma banca de relógios e outra de
lingerie instalou a sua: mesa, o dicionário e a cartolina na qual se
lia:

- Histriônico – apenas R$ 0,50.
Demorou quase quatro horas para que o primeiro de mais de cinqüenta
curiosos parasse e perguntasse:
- O que o senhor está vendendo?
- Palavras, meu senhor. A promoção do dia é “histriônico” a
cinqüenta centavos, como diz a placa.
- O senhor não pode vender palavras. Elas não são suas. Palavras
são de todos.
- O senhor sabe o significado de “histriônico”?
- Não.
- Então o senhor não a tem. Não vendo algo que as pessoas já tem ou
coisas de que elas não precisem.
- Mas eu posso pegar essa palavra de graça no dicionário.
- O senhor tem dicionário em casa?
- Não. Mas eu poderia muito bem ir à biblioteca pública e consultar um.
- O senhor estava indo à biblioteca?
- Não. Na verdade, eu estou a caminho do supermercado.
- Então veio ao lugar certo. O senhor está para comprar o feijão e
a alface, pode muito bem levar para casa uma palavra por apenas
cinqüenta centavos de real!
- Eu não vou usar essa palavra. Vou pagar para depois esquecê-la?
- Se o senhor não comer a alface ela acaba apodrecendo na geladeira
e terá de jogá-la fora e o feijão caruncha.
- O que pretende com isto? Vai ficar rico vendendo palavras?
- O senhor conhece Nélida Piñon?
- Não.
- É uma escritora. Esta manhã, ela disse na televisão que o país
sofre com a falta de palavras, pois os livros são muito pouco lidos
por aqui.
- E por que o senhor não vende livros?
- Justamente por isso. As pessoas não compram as palavras no
atacado, portanto eu as vendo no varejo.
- E o que as pessoas vão fazer com as palavras? Palavras são
palavras, não enchem a barriga.
- A escritora também disse que cada palavra corresponde a um
pensamento. Se temos poucas palavras, pensamos pouco. Se eu vender uma
palavra por dia, trabalhando duzentos dias por ano, serão duzentos
novos pensamentos cem por cento brasileiros. Isso sem contar os que
furtam o meu produto. São como trombadinhas que saem correndo com os
relógios do meu colega aqui do lado.

Olhe aquela senhora com o carrinho de feira dobrando a esquina. Com
aquela carinha de dona-de-casa, ela nunca me enganou. Passou por aqui
sorrateira. Olhou minha placa e deu um sorrisinho maroto se mordendo
de curiosidade. Mas nem parou para perguntar. Eu tenho certeza de que
ela tem um dicionário em casa. Assim que chegar lá, vai abri-lo e me
roubar a carga.

Suponho que para cada pessoas que se dispõe a comprar uma palavra,
pelo menos cinco a roubarão. Então eu provocarei mil pensamentos novos
em um ano de trabalho.
- O senhor não acha muita pretensão? Pegar um...
- Jactância.
- Pegar um livro velho...
- Alfarrábio.
- O senhor me interrompe!
- Profaço.
- Está me enrolando, não é?
- Tergiversando.
- Quanta lenga-lenga...
- Ambages.
- Ambages?
- Pode ser também “evasivas”.
- Eu sou mesmo um banana para dar trela para gente como você!
- Pusilânime.
- O senhor é engraçadinho, não?
- Finalmente chegamos: histriônico!
- Adeus.
- Ei! Vai embora sem pagar?
- Tome seus cinqüenta centavos.
- São três reais e cinqüenta.
- Como é?
- Pelas minhas contas, são oito palavras novas que eu acabei de
entregar para o senhor. Só “histriônico” estava na promoção, mas como
o senhor se mostrou interessado, faço todas pelo mesmo preço.
- Mas oito palavras seriam quatro reais, certo?
- É que quem leva ambages ganha uma evasiva, entende?
- Tem troco para cinco?

Fábio Reynol é jornalista especializado em ciências e escritor.

Postado pelo jornalista Wilson Ibiapina


1 comentário:

Euzeny Bayma disse...
sem palavras para este vendedor.... genial o escritor... aplausos para este rapaz que postou, acho que o conheço!!!...abraços aos dois.

Um comentário:

  1. sem palavras para este vendedor.... genial o escritor... aplausos para este rapaz que postou, acho que o conheço!!!...abraços aos dois.

    ResponderExcluir