Berço do surf nacional pode perder as ondas no Ceará




Kamila Fernandes
Especial para o UOL Notícias
Em Fortaleza
Um dos berços do surf nacional, a praia do Titanzinho, em Fortaleza, pode ficar sem ondas. Um projeto para a construção de um estaleiro para fabricar navios gaseiros para a Transpetro está muito perto de se tornar realidade e, para isso, será necessário tornar "calmo" o mar da região, sem as ondas que formaram campeões como Tita Tavares, Fabinho Silva, Pablo Paulino e Messias Félix.

O estaleiro será construído pelo Promar Ceará, formado pela empresa PJMR, que venceu todas as etapas da licitação feita pela Transpetro (estatal ligada à Petrobras), inclusive com a melhor oferta de preço. Resta apenas uma última negociação de custos para bater o martelo, o que é esperado para fevereiro. A licitação faz parte do Promef (Programa de Modernização e Expansão da Frota) e prevê a construção de oito navios gaseiros, sendo quatro com capacidade para 7 mil metros cúbicos de gás, dois para 12 mil metros cúbicos e outros dois para 4 mil metros cúbicos.

Águas calmas


Construção de estaleiro exige mudança em lei
Para construir um estaleiro na praia do Titanzinho, o governo do Ceará não terá de intervir apenas nas ondas do local: terá também de tornar nula - ou pelo menos abrandar - uma lei que tornou o bairro do Serviluz, onde está a praia, uma Zeis (Zona Especial de Interesse Social), de acordo com o Plano Diretor de Fortaleza.
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O Titanzinho está situado em um dos bairros mais pobres de Fortaleza, o Serviluz, com 21 mil habitantes, próximo ao porto do Mucuripe.
Pelos altos índices de criminalidade, a região não se tornou um ponto turístico tradicional da cidade, apesar da bela paisagem e das ótimas ondas. De fora, só quem frequenta a área são os surfistas que conhecem a fama do mar. "Quem é do surf tem que passar pelo pico do Titanzinho. E sempre que tem algum campeonato aqui por perto, uns gringos passam por aqui para conferir", disse Pedro Paulo Fernandes, presidente da ONG Serviluz Sem Fronteiras.

As ondas não são apenas para profissionais. Cerca de 500 jovens da comunidade se dedicam ao surf na localidade, e alguns deles até ganham algum dinheiro com isso. Anderson Ribeiro, 16, surfista desde os 11 anos, é um deles. Com uma bolsa mensal de R$ 100 bancada pela Funcap (Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico), Anderson pode surfar todos os dias (às vezes até duas vezes ao dia), ensina outros jovens - é monitor de dez -, e não deixou de estudar. Como o bairro não tem uma escola de ensino médio, ele tem de se deslocar até um bairro vizinho para frequentar o 1º ano - o que só é possível com a bolsa.

Outro que não deixa de surfar um dia sequer, com o apoio da bolsa da Funcap, é Bruno dos Santos, também de 16 anos, surfista desde os 8.
"Querem acabar justo com a nossa única forma de lazer. Isso não é certo", disse Anderson. "Acho que se a turma ficar sem as ondas, muita gente vai mesmo para o outro lado, o das drogas, do crime", completou.

É isso o que teme também Leonardo Damasceno de Sá, doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e pesquisador do LEV (Laboratório de Estudos da Violência) da universidade. Com uma tese sobre a situação dos jovens do Serviluz, Leonardo considera a tentativa de levar o estaleiro para o bairro o fim da esperança para boa parte deles, o que, consequentemente, pode culminar num aumento da violência nos arredores.


Imagem cedida pelo governo do Ceará mostra projeção do estaleiro na praia do Titanzinho
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"Há um forte estigma contra o surf, tido como algo supérfluo, mas para a juventude dali é uma esperança, já que eles veem tantos campeões que saíram de lá e viajam o mundo. É uma forma de economia criativa que pode ser ainda mais valorizada, mas, sem as ondas, podemos esperar um grande aumento da criminalidade", disse.

Local ideal
Já foram apresentadas outras opções de locais para a construção do estaleiro no Ceará, entre elas um trecho bem próximo a outro porto, o do Pecém (a 60 km de Fortaleza), onde há um projeto de parque industrial e de construção de uma siderúrgica, que poderia fornecer aço para os navios.

O governo do Ceará argumenta, porém, que não haveria viabilidade técnica para a instalação do estaleiro ali, sendo necessário, para isso, investimentos muito maiores do que os previstos para o Titanzinho - que está orçado em cerca de R$ 220 milhões, sendo R$ 60 milhões do próprio governo cearense. O Promar já incluiu o investimento em um programa do Fundo de Marinha Mercante, que deve aportar recursos do Tesouro Nacional à indústria naval brasileira, e espera contar ainda com o reforço financeiro do estaleiro coreano STX.


O Titanzinho é considerado o local ideal por já haver ali um grande quebra-mar, montado para o porto do Mucuripe, e pela profundidade do mar, de 10 a 12 metros - o restante do litoral cearense é considerado raso e com ondas muito fortes, o que dificultaria a instalação do empreendimento. Para o estaleiro, será necessário apenas complementar o quebra-mar, de forma a reduzir as ondulações da maré, e construir as demais instalações. Estima-se que o estaleiro possa faturar US$ 200 milhões ao ano e gere 1.500 empregos diretos.

"Como vão dar os empregos para a população local se nem escola de ensino médio existe ali? É uma falácia", pergunta Leonardo.
Na opinião do vereador Acrísio Sena (PT), líder da prefeitura na Câmara Municipal, o empreendimento é importante para o Estado, mas não é adequado para um centro urbano. "A questão econômica não pode estar acima da vida das pessoas", disse.

Para os surfistas Anderson e Bruno, o maior sonho é poder competir um dia no exterior, representando bem o Titanzinho. "Não é fácil, não, precisa de patrocínio, mas a gente treina para isso", disse Bruno, que com orgulho contou que conseguiu recentemente o segundo lugar num campeonato de surf amador na praia do Iguape, em Aquiraz (região metropolitana de Fortaleza). Anderson ficou em terceiro lugar.

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